De
vez enquanto me defronto com um livro de Delmo Montenegro nos montes de queima
das livrarias (atraem-me os livros de ponta de estoque, pois geralmente sobram
aqueles de aventuras experimentais, obras que não atraem consumidores em busca por
diversão, confiantes naquilo que está aclamado pela crítica ou mesmo por temas
de fácil compreensão para o nível de formação dos leitores em causa). Manuseio o
exemplar e fico ali estupefato diante da somatória de desenhos e dispersão das
palavras em busca de junção que me esclareça ou comova algum dos meus nervos.
Ciao cadáver,
além de outras visualidades, contém diversas gravuras recortadas de partituras
musicais. A primeira dificuldade advém de meu despreparo para leitura de qualquer
notação musical. As notas abaixo ou acima na ordem das linhas não passam de
pássaros que decidiram se assentar numa determinada ordem dos fios, e não em
outra diversidade. Podemos dizer que a beleza do mundo é essa casualidade da
posição em que o pássaro ou o homem se instala na realidade. E por que não
podemos dizer o mesmo da poesia? O poema é a junção de determinados elementos
que o poeta arrancou de seu inconsciente para estruturar um arranjo que possa
ser exibido. Dois poetas jamais poderão compor um poema de forma idêntica, se
suas “tabula rasa” não se correspondem no preenchimento.
Delmo
Montenegro vem de uma corrente da poesia em que se agregam poetas
autoconfiantes na política de divulgação que estabeleceram e na poética econômica
de composição que vêm definindo, sem prática da expressão lírica, talvez de
exigência de interpretação para impor significado ou aproximação do leitor à
abertura expressiva do texto poético. Nem sempre o leitor consegue aproximar-se
do texto já que não está ou não participou do universo arqueológico do autor. Uma
corrente em linhagem direta de Sebastião Uchoa Leite e que conta com Frederico
Barbosa como expressão máxima. Delmo Montenegro desalinha o seu tanto com o
grupo em razão da inserção da visualidade e da soltura das palavras, eliminando
a necessidade da constância frasal. Tanto poderá ser uma obra que servirá de
marco como outra qualquer que apodrecerá com o monturo. A edição de Ciao cadáver é de 2005. Faço a leitura
em 2018. Um período agourento de 13 anos. Como não estou aderido ao agouro, não
posso decretar o seu falecimento, prefiro insurgência ou ressurgência.
Num
primeiro momento, por não dominar o italiano e muito menos qualquer língua,
achei que o título do livro do Dalmo Montenegro quisesse dizer “Tchau cadáver”,
mas aí não corresponderia à realidade de um tempo de derruição, de desventura,
pois estamos vivendo um momento de convivência morta, suspeita, indiferente.
Não conseguimos satisfação dentro da ordem ou desordem da cidade, do trânsito,
de nosso quarto, de nossa política, do diálogo. E muito menos da linguagem da
poesia. Dei a googuda e descobri que o título remete – com justiça – para esta
necessidade de o poeta se deparar com a sua realidade, coabitar com ela, com
ela se confundir.
“Ciao”
foi escolhida como uma luva para fazer o arranjo poético do tempo que vivemos,
pois é uma palavra que não só dá adeus ao cadáver, mas, acima de tudo, saúda o
nosso tempo, que é um cadáver que se exaure e expõe a podridão. Ei, oi, olá,
cadáver, o poeta te saúda. E saúdo a ousadia de Delmo Montenegro pela coragem
de incomodar a leitura ou a inleitura com o seu livro Ciao cadáver.
É
um livro que, se não move nenhum dos meus nervos, empurra-me para outro espaço
da habitação da poesia. Sinto, com esse livro, que muita poesia que se faz,
atualmente, não chegou nem à infância do que é preciso ser feito da linguagem
poética num tempo de exaustão. Sou um G. H., pois se não consegui engolir a
barata, pelo menos a deixei na boca para aumentar a salivação. Quem não se
permite salivar com a estranheza não compreende a sobrevivência. A
sobrevivência da poesia depende da experiência e de novos arranjos dos
elementos que vão entrando no insciente dos poetas.
Leiamos
Byung-Chul Han e vamos ver que a realidade não está fácil e, no entanto, pode
ser compreendida e vivida. Toda realidade, enfim, é vivenciada. Não há fuga. O
niilismo tentou tirar o real ou o homem da real, mas tudo continua aí. Falta
cair na real e se ordenar dentro de um novo arranjo, inclusive num novo arranjo
da dicção, da expressão de si mesmo. O que me expresso não me interessa mais e
muito menos interessa ao outro. Vamos em frente então com a possível ou
implausível linguagem, ou não-vida. Olá, cadáver. Para haver um cadáver, o
homem é o assassino. O homem assassina a realidade e, dentro dela, assassina a
linguagem.
Não
precisamos nos desiludir nem como críticos nem como assassino. Só com o
assassínio há inversão ou reinvenção. Por que a guilhotina sobreviveu até 1977?
Produzimos para o monturo, para picotar e reciclar. Reproduzimos para
aprisionar e decapitar.