22 de dezembro de 2019

Balanço de minhas atividades literárias em 2019

Saio de 2019 enriquecido. Foi um ano marcante em minha vida. Publiquei dois livros, tomei posse na Academia de Letras do Brasil, fui a Goiânia para duas palestras (Academia Goiana de Letras e Museu Frei Confaloni), recebi o Diploma de Destaque Cultural, do Governo de Goiás. Estive com muitos amigos, vi muitos insetos, escrevi mais um livro de poemas (estou com 5 livros de poemas inéditos e quase concluso mais um nos moldes do Poética e andorinhas). No último domingo de dezembro, está prevista a publicação de um depoimento meu na revista Correio das Artes, de João Pessoa, sob a coordenação do poeta Sérgio de Castro Pinto.

Abaixo, alguns registros de minha participação cultural no ano que se encerra. Como não fiz anotações ao longo do ano, alguns podem não figurar nos registros, sobretudo os lançamentos da Semim Edições do amigo Sóter, que foi bem ativo em 2019, juntamente com a Ava.

20.1 - Circulou no ambiente virtual a revista InComunidade com meu artigo sobre o poeta José Godoy Garcia. A revista é editada em Portugal pelo poeta Jorge Vicente.
21.2 – Comparei à outorga de grau, em Enfermagem, na UnB, da neta Laura Martelletti. Honrado que ela tenha citado meu poema, em seu pronunciamento, sobre o faroleiro: “Ainda assim o faroleiro acenderá”. Ocorra o que ocorrer, o faroleiro nos indicará os caminhos.
21.3 – Compareci à posse do amigo Eugênio Giovenardi na Academia de Letras do Brasil.
28.3 – Compareci à Associação Nacional de Escritores para a palestra/recital de Júlio César Costa sobre a obra de Fernando Pessoa.
3.4 – Compareci no Beirute no lançamento de O feeling e o bíceps, de Marcos Fabrício.
8.4 – Compareci ao lançamento do livro Poesia Provisória. Surpreendente a poesia do recente livro de Nirton Venâncio. Poesia provisória foi elaborado ao correr de muitos anos e isso possibilitou cada palavra, cada gestual das metáforas estarem nos locais corretos. É uma lírica sem excesso, sem ter se prejudicado pela experiência da oralidade dos recitais, que é onde Nirton Venâncio gosta de estar. Muito pelo contrário. A poesia aparece com introspectividade limpa, questionadora de si mesma. Traz poemas que irão entrar para sempre em nosso imaginário. “Bússola” trabalha com imagens antagônicas; “O morto” esclarece que o poeta é um trabalhador que pega uma madeira, uma medida de barro ou pedaço de pedra, e lamina algo com todos os contornos exatos. É isso. A poesia é muito mais que ver o lençol no varal. Tenho certeza que os admiradores dos irmãos Campos vão ficar com inveja do teu lençol do poema “Quimera”, Nirton Venâncio. Já estou aguardando pelo anunciado próximo livro
11.4 – Participei da festa de posse do Adalberto De Queiroz na Academia Goiana de Letras. Encontro com o Bariani Ortencio Icebo, rever o amogo Brasigois Felicio Felicio, ai meu deus, a conversa sempre eufórica e rica de vida com Maria Abadia Silva, tem a Alice Spinola e o Mário Zeidler Filho e o rol em outras fotos.
16.4 - Compareci ao Carpe Diem para o lançamento de três livros do poeta Diego Mendes Sousa.
23.4 - Estive no Instituto Cervantes para uma palestra proferida por Esther Blanco sobre a poeta uruguaia Ida Vitale, que recebeu nesta data o Prêmio Cervantes. Trajetória maravilhosa, com um propósito de produção escorreito e uma poesia chocante.
25.4 – Reeleito para a Diretoria da Associação Nacional de Escritores que terá mais um biênio sob a direção exitosa do amigo Fábio de Sousa Coutinho. Fui reconduzido para o cargo de diretor (tesoureiro).
27.7 – Agradeço à Mel Inquieta a publicação de meus poemas no site https://redesina.com.br/
28.4 – Saiu o capítulo do trabalho de Alessandro Eloy Braga, sobre a minha poesia, em estudo sobre a Poesia em Brasília. O trabalho deverá se tornar livro impresso em 2021. Diz Alessandro Eloy Braga:
“A poesia de Salomão Sousa é, de fato, um conjunto de enigmas instigantes e desafiadores. Reflete a experiência de um escritor que, além de dominar as técnicas da versificação, é, acima de tudo, um poeta que percebe a complexidade emocional que envolve o mistério da linguagem poética, que sabe muito bem como elaborar e como desvendar a complexidade dos enigmas da poesia. Nada é automático. Nada é óbvio. De sua obra emana uma sensibilidade que atribui força e potência muito pessoais ao seu trabalho. Seu rico vocabulário e seus enlaces semânticos dão aos poemas uma linguagem própria e claramente integrada às propostas estéticas, tanto formais quanto temáticas, da poesia moderna do século XX, onde convivem a inovação das linguagens, o coloquialismo das ruas e dos regionalismos, a consciência filosófica da existencialidade do eu e do mundo, a criatividade inovadora e a subjetividade das memórias da historicidade que formam a bagagem da vida. Este conjunto de elementos textuais faz com que, em cada poema, haja uma acentuada originalidade, alimentada por uma criatividade inteligente, que deixa o poeta completamente livre do lugar comum. “
(ALESSANDRO ELOY BRAGA é Doutor – com distinção e louvor – em Estudos Clássicos/Literatura pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (2015); Mestre em Educação pela Universidade Católica de Brasília (2001) e Licenciado em Letras-Português pela Universidade Católica de Brasília (1995)).
3.5 – Compareci à Associação Nacional de Escritores para assistir a palestra do amigo Wilson Pereira sobre Pablo Neruda.
15.5 – Compareci ao Carpe Diem para o lançamento de dois livros do amigo Flávio Kothe: Literatura e sistemas intersemióticos e Sem deuses mais.
23.5 -  Tomei posse na Academia de Letras do Brasil na cadeira cujo patrono é Manuel Bandeira. É muito bom estar ao lado de quem gostamos e vendo que o resultado de nosso trabalho tem uma razão de ser! 
29.5 – Compareci ao Beirute para o lançamento dos Cem Poemas Escolhidos de Marcos Freitas.
30.5 – Honrado com a oportunidade de participar da série de debates da Academia Goiana de Letras (AGL). Presença especial de muitos amigos e quase a totalidade dos acadêmicos.
30.5 – Participei como convidado do programa "O mundo em sua casa", da rádio RBC de Goiânia. 
1.6 -  Mesa redonda para debate no Museu Frei Canfaloni, na antiga Estação Ferroviária. A amiga Maria Abadia Silva foi generosíssima na moldagem desses eventos no museu e na AGL, com mãos de ouro. Fica a saudade do comparecimento de uma professora do interior da Amazônia. Desses eventos ficam os encontros surpresas.
4.6 – Lancei no Beirute os livros Desmanche I e Poética e Andorinhas. Um rol de queridos amigos fiéis presentes. Voltaremos a nos rever sempre.
8.6 – Tristeza pelo falecimento do amigo Alceu Brito Corrêa.
11.6 - Compareci ao lançamento do livro Fundamentos de Ventilação e Apneia, do amigo Alberto Bresciani, no Carpe Diem.
14.6 - Participação da Feira do Livro. Agradeço à mana Rosa Abreu, ao amigo Ronaldo Mousinho, a presença cativante da Natália Cristina, e as companhias de Lúcia e Lincoln, no Espaço do Autor totalmente vazio. A experiência do vazio é inevitável em tempos de indiferença pela cultura.
14.7 - Dia de andar pela Esplanada com os netos. Estupefato sempre diante do X da censura e do resultado das armas. Temos de legar aos nossos descendentes a experiência da cultura, senão só assistiremos o crescimento do desumanismo.
29.7 – Estive no sepultamento de Emanuel Medeiros Vieira, contista e poeta catarinense, associado da ANE e respeitado escritor brasiliense, onde foi funcionário da Câmara dos Deputados.
1.8 – Na edição de nº 200, do jornal A Voz, de Silvânia, foi publicado o artigo Salomão Sousa: Poeta brasileiro – baluarte de nossa literatura e nossa poesia, de Antônio da Costa Neto, que retrata com retidão, de forma afetiva, a nossa trajetória.
7.8 - Lançamento do amigo Vicente de Paulo Siqueira com a sua poesia enxuta.
8.8 – Compareci ao lançamento do romance Nenhum Espelho Reflete seu Rosto da escritora Rosângela Vieira Rocha e à palestra do Edmilson Caminha, na ANE, sobre Gilberto Amado. Encontro com Wilson Pereira e Das Squarisi.
9.8 – Participei, no Sesc, da mesa de  debate sobre literatura de Brasília, promovido pelo Sindicato de Escritores. Tema: “Os Caminhos da Literatura no DF”, ao professor da UnB e escritor Augusto Niemar.
15.8 Manoel Hygino publica a crônica O problema ambiental, que toma poemas nossos para fundamentá-la.
21.8 – Fui lançamento do romance Cárcere Privado da amiga Margarida Patriota, onde reencontrei amigos. Os lançamentos relembram a vivacidade da literatura e alimenta as amizades pelos encontros.
23.8 - Participação do projeto da Academia de Letras, Artes e História de Silvânia no Colégio Manoel Caetano, no bairro São Sebastião. Eu, Claudinéia Araujo, Cleverlan Do Vale e Valdir Antonio Rosa. Debate de autores nas escolas é motivação para leitura, disciplina e imaginação, que melhoram a participação social.
28.8 – Fui ao lançamento do novo livro de poemas de Luis Turiba, Desacontecimentos, onde me encontrei com o amigo José Edson Dos Santos, bem como uma gavinha sem galho onde agarrar-se.
31.8 - Em evento no Palácio das Esmeraldas, em Goiânia, recebi o Diploma de Destaque Cultural de 2019. A vida tem de ter uma continuidade como as amoras na amoreira. Não basta uma safra, senão há a esterilidade. Como o talo do boldo, há de crescer sempre uma sucessão de cachos novos para impor sobrevivência. Matei saudade de grandes amigos de Goiânia. Vassil Oliveira, que também foi agraciado em outro evento; Brasigois Felicio Felicio, do Conselho de Cultura, e Euler Fagundes de Belém, que recebeu Medalha de mérito da cultura goiana, com nossas úteis trocas de de conhecimento. Ser goiano é ser agraciado com uma forma de vida: a serenidade diante do caos.
3.9 – Compareci ao Carpe Diem para o lançamento de livro do escritor Wilson Pereira (Vento, Cavalo do Tempo), com a sua poesia essencial.
9.9 – Assisti, na Associação Nacional de Escritores, a palestra de Antonio Carlos Secchin sobre os Percursos da Poesia Brasileira! 
10.10 – Assisti na Associação Nacional de Escritores a palestra do romancista coreano Kang Byoung Yoong, que manifestou muita sagacidade juvenil.
13.09 - Compareci ao lançamento do livro Liberdade, de Maria Coeli. Livre que reúne poemas e textos de reflexões biográficas. De uma espontaneidade cativante. Somos amigos desde 1980, quando fomos apresentados para ela me entregar os poemas que integrariam a antologia Em Canto Cerrado, que eu organizei naquele ano. Olha o belo poemas
:
Mulher chata ao telefone me olha
Douglas era um olhador
Gosto de ser olhada, apreciada
Animais silvam, nada é à toa.

É como me sinto vigiada
Na frente pelas lentes
os microfones
as caixas de banco
o Imposto de Renda
o INPS
Existo? 038.742.491-15
:
29.9 - Em Goiânia, no jornal Opção, saiu um artigueto meu sobre a poesia de Daniel Francoy. Tenho procurado analisar os poetas que se destacam no cenário atual por construir com consciência, com busca de rumos próprios. Talvez Daniel Francoy seja um dos poetas que venham a ter maior visibilidade no cenário nacional, pois há espontaneidade, há trabalho no seu processo criativo. Torcemos para que uma grande editora venha a bancá-lo e logo os seus livros possam estar mais acessíveis.
14.10 – Na Associação Nacional de Escritores, palestra e lançamento do Romance do famoso escritor maranhense Ronaldo Costa Fernandes. o amigo Wil Prado diz do romance, em bela resenha publicada no jornal Opção: "Vieira na Ilha do Maranhão é o mais novo clássico da literatura brasileira. A história deve redundar num belo filme de época”.
16.10 – Compareci ao Carpe Diem para o lançamento do Edmilson Caminha (A solidão no progra do Jô).
17.10 – Compareci à Associação Nacional de Escritores para a palestra do cineasta Pedro Jorge de Castro sobre literatura e cinema.
7.11 – Compareci à palestra e lançamento da escritora Margarida Patriota (Tempo de delação), na Associação Nacional de Escritores.
13.11 – Compareci ao Carpe Diem para o lançamento de Flávio Kothe. Dois livros numa tacada: Fundamentos da teoria literária/e/Segredos da concha.
14.11 – Participei da Reunião da Academia de Letras do Brasil para lançamento do segundo número de sua revista.
14.11 - O Colégio Estadual Salim Afiune, de Leopoldo de Bulhões, como parte da Feira de CIÊNCIAS, apresentou trabalhos sobre os escritores da Academia de Letras, História e Artes de Silvânia. Graças ao belo trabalho de Thiago Vieira. Foram expostos poemas de nossa autoria.
17.11 – Escrevi um poema com dois versos que me deixaram muito feliz por terem se manifestado a mim:

Conseguisse em mim, num barco, num percurso,
cravar uma haste de conciliação.

21.11 – Participei da homenagem ao poeta Anderson Braga Horta, na Associação Naciolnal de Escritores.
22.11.19 – Compareci em Vianópolis (GO) para lançamento dos livros O Menino do Trem (Crônicas), de Antônio Gomes, e Maria da Glória na festa do Engenho Velho (Romance), de Elson Gonçalves de Oliveira. Agradeço ao Antonio Gomes a honra de apresentar seu livro.
30.11 – Passei uma semana em Silvânia na casa de minha mãe. Participei da cerimônia de lançamento da revista Gotejos Literários e Acadêmicos, da Academia de Letras, Artes e História de Silvania. A revista traz quatro poemas meus.
5.12 - Um périplo pelas ruas de Brasília. Chuva e chuva para comparecer ao lançamento do livro 3, de Wélcio de Toledo, na 206 Norte,  e à posse de Valdir Ximenes na Academia Brasiliense de Letras. Tudo é uma grande festa, regada com literatura!!! Wélcio é um poeta surpreendente, pois liberado para a oportunidade que o poema oferece. São poemas com grita geral dos temas atuais. Algumas tiradas biográficas, como no poema Cânone (liquidar as dezenove multas de trânsito acumuladas ao longo do ano), ou biográficos de algum outro cidadão. Mas alguns registros são, provavelmente, biográficos do próprio poeta (concorrer naquele edital de cultura jamais sairá (...) atualizar o lattes (...)) A poesia tem de ser isso: aventurar-se pelas experiências atuais.
11.12 – Participei, na Associação Nacional de Escritores, das comemorações dos 40 anos do CECULCO - Centro de Cultura da Região Centro-Oeste. Nossos cumprimentos à Sonia Ferreira
19.12 – Participei da confraternização da Associação Nacional de Escritores.

6 de novembro de 2019

O COQUE

Para Mariza Buslik

Sou aficionado pela origem das palavras e pelos diversos significados que elas vão ganhando durante os desdobramentos dos choques da Cultura. Uma palavra é a representação de um ato da Civilização. Senão, das Civilizações. Ocorre ainda que é mais confortável explorar as possibilidades do uso de uma palavra do que as consequências da manipulação delas, tais como “baratas”, “ratos” e “pragas do Egito” para desqualificar raças e etnias e, depois, termos o holocausto e o genocídio dos tutsis em Ruanda.

Noutro dia, fui surpreendido com as observações de uma amiga, que teve a visibilidade prejudicada num teatro em razão de um “coque”. Usava-o uma mulher que ocupava a cadeira bem na sua frente. O coque elevado e volumoso impediu que ela assistisse ao espetáculo.

De cara, fui levado a imaginar que a tradição do coque venha das etnias africanas, onde os espaços da natureza são abertos, com longos horizontes, e as mulheres, para serem melhores notadas, alongam seus corpos com elevados penteados. Realmente, há registro da ocorrência da prática no Zaire. A etnia mangbetu pressionam os crânios dos bebês para que eles cresçam com cabeças alongadas e os rostos, quando forem adultos, sejam afilados. As moças da etnia, para prolongar ainda mais o rosto, trançam finos coques, que serão encimados por uma fina coroa rija.

Ao consultar verbete “coque”, verificamos que a palavra ganhou diversos significados ao longo da História. Alguns deles: batida na cabeça, da onomatopeia cocre; cozinheiro dos marnotos nas margens do rio Sado, do inglês cook; material combustível sólido, resultado da calcificação ou destilação da hulha, do inglês coke; roseta de cores, em forma de chapéu ou enfeite para cavalos, como distintivo de partido, nação ou instituição, bem como adorno de penas usado na cabeça, do francês cocarde; e porção de cabelo manipulado ou enrolado em alguma forma, do francês coque (concha). Portanto, foi na França, que vem sendo o berço da moda, onde foi cunhado o termo “coque” para os tipos de penteado com elevação, sejam para o alto, para as laterais ou para a parte traseira da cabeça. Nem só em modelação em concha (coque), mas até em formato de abacaxi.

Podem alegar ‒ e assim fazem os registros do design da moda ‒ que o coque surgiu na Grécia antiga, onde foi usado pelas mulheres, inclusive deusas femininas, e também por alguns homens. As gregas, no início, prendiam o cabelo com um coque chignon, depois passaram a ser coques redondos.

Mas a prática passou por várias civilizações, inclusive pela China antiga. No Egito, os coques chegaram a ser arranjados com arame, e com esses penteados as egípcias eram enterradas. Na Suméria (3 000 a. C.), as mulheres usavam os seus cabelos em coque (chignon pesado). As mechas eram pulverizadas com pó de ouro ou perfumado amido amarelo. Acresciam ornamentos, sobretudo presilhas de ouro.

Os samurais tinham diversos cortes de cabelo. No período Edo, que vai de 1603 a 1869, o estilo se compunha de parte superior da cabeça raspada com os cabelos laterais curtos e um rabo na parte de trás, que era enrijecido com óleo e amarrado com um fio no topo da cabeça, modelado no formato de uma adaga em riste. Os ronins, que não tinham mestre e, por isso eram considerados sem honra, tinham de cortar esses rabos de cabelo. Portanto, para os samurais, o coque é o sinal de honra, obtida com a aprendizagem através de um mestre. O coque passou a ser usado pelos lutadores de sumô. Ao menos para mim é no sumô que o coque recebe a moldagem mais bem elaborada. Com lubrificação especial, uma porção de cabelo é elevada na parte superior da cabeça em graciosa forma de concha. O último corte de delineamento desta porção de cabelo é feito pelo treinador – ato que, assim como para a tradição dos samurais, também a ação do mestre atribui honra ao lutador de sumô.

Na Idade Média, com a inibição do erotismo pela Igreja, as mulheres passaram a esconder os cabelos. Depois, no Século XVIII, as cortesãs usavam trunfas, chamados fontages, que chegavam a 80 cm de altura. As trunfas eram falsos coques. Estes elevados turbantes serviam para elas se exporem sem quebrar a regra de exposição dos cabelos e permitiam às cortesãs serem notadas à distância nos salões.

Na Inglaterra vitoriana, o coque virou símbolo de penteado para as mulheres mais velhas. Já na era Moderna, o coque ganhou sofisticação para as atrizes de Hollywood dos anos 1950 e 1960. Com o advento das liberdades individuais alcançadas pelas mulheres, no Século XX, os cortes de cabelo passaram a ser adotados no formato reto, com franja, o Corte Chanel e o curto, com um fio de pega rapaz. No entanto, ainda predominam no Século XXI os coques, alguns bem elevados, fixados com laquê, indispensáveis nas cerimônias, sobretudo de casamento.

Os quiropraxistas e outros profissionais desaconselham a adoção do penteado em coque. Pois, para evitar desmanchar o arranjo, a mulher pode adotar posturas que não oferecem descanso ao corpo e ter a saúde afetada com dores lombares, nas costas e na coluna. Independente do aconselhamento do risco para a saúde, são diversos modelos de coque sugeridos: grego, grego com trança, grego com cachos, rosquinha com trança ou donut, baixo, coque leque, coque duplo, coque deusa grega, ou, então, simplesmente, coque banana. Entre inúmeros outros, coque abacaxi ou afropuff, com turbante.  Cada um adote ou invente o seu. Por exemplo – o sumô concha.

O coque, geralmente em forma de rodilha, assume em muitos momentos o aspecto de instrumento de trabalho, servindo para apoio de cargas na cabeça tanto na África como em regiões de diversos outros países, inclusive no Brasil.

Assim como não se deve manipular os nomes de animais peçonhentos ou de insetos para evitar holocaustos ou genocídios, para boa convivência social, com as pessoas ocupando ambientes fechados e reduzidos, aconselha-se a não usar coques excessivamente elevados para não prejudicar a visibilidade nos teatros, cinemas e estádios. A minha amiga – para obter espaço para visibilidade – não pôde, por falta de cadeira desocupada, mudar de lugar e, por civilidade, resistiu e não deu um coque na pessoa da frente para que pudesse assistir com prazer ao espetáculo.

13 de outubro de 2019

Crônica com flor para uma jovem leitora

Este bilhete é escrito para uma estudante que não encontrou a biblioteca de sua escola aberta na semana que antecedeu o dia das crianças. Durante todos os dias da semana ela encontrou a porta da biblioteca fechada. Procurou a direção da escola por várias vezes. A direção não pode atendê-la, pois obras estavam sendo realizadas na sala onde funciona a biblioteca.

A garota disse que pediria à mãe para levá-la à escola em outro horário, pois reside em outro bairro. Ela não queria se entediar no feriado e a leitura seria uma ocupação. É o que ela disse a um professor. Certamente a mãe não pode ir à escola com ela, pois ela não compareceu no horário combinado com o professor.

Eu gostaria de saber como ela ocupou o fim de semana. Se ela conseguiu algum livro. Se ela tem computador para dialogar com amigos, ver vídeos ou até mesmo ler livros. Se a sua casa tem uma estante com alguns livros. Se o seu bairro tem uma biblioteca pública.

Eu me lembro que não tinha estante em minha casa. Catei no lixo um caixote de ripas de madeira, de carregar frutas e legumes na feira, e preguei umas pernas de pau nele. Aquele caixote foi a minha primeira estante, onde guardei os primeiros livros e revistas que consegui, bem como recortes de jornais que gosto de colecionar até hoje. Alguns livros eu coletei no lixo. Esses livros, revistas e recortes foram os únicos bens que eu trouxe para Brasília, onde consegui outro caixote para remontar minha estante.

Penso na grande desgraça que é a falta de material de cultura nas casas brasileiras. Bem como a falta de orientação para que os jovens consigam preencher esse vazio. Tenho até a impressão que é cômodo e útil termos jovens à margem da formação e da sabedoria. Pessoas que nada entendem, que ficam sem formação, podem ser manipuladas para que o sistema permaneça o mesmo, com uma escravização eterna.

Estou separando alguns livros para esta pequena jovem. Enviarei para que seja entregue a ela em sua escola. Enviarei para ela também este bilhete.


Digo a ela para continuar batendo nas portas para que não só a biblioteca seja aberta. As portas não se abrem se não insistimos, às vezes precisamos esmurrá-las, abri-las a machadadas, ou com conhecimento. Por isso, leia sempre, duvide sempre, não dê apoio incondicional a qualquer ideia, exija e vá atrás. Para isso, não dispense nunca de ser feliz e alegre e de amar as pessoas. De tratá-las com cortesia. Até quando duvidamos das pessoas, será mais fácil tê-las ao nosso lado se as tratamos com cortesia. Não odiar nunca. O ódio gera violência, elimina a razão e o diálogo.

Só por você querer ocupar seu tempo com a leitura eu já sou seu fã. Já posso imaginar que o seu destino terá muitas estradas, muitas portas abertas, muitas possibilidades. Participe sempre com suas ideias. Assim você torna a sua vida muito mais rica, ajuda a sua família, a sua escola, a sua comunidade.

Assim você me comoveu e faz acreditar que sempre há uma pessoa maravilhosa ao nosso lado, em outro bairro, que está trabalhando por si mesma e pelas demais. Não curta o tédio, dê sempre um jeito de ler um livro, de fazer bem suas lições, de assistir os jornais e programas de debate na televisão. Besta é o que não usa o tempo a seu favor. Se não nascemos sabendo, temos de escrever nas páginas em branco de nosso cérebro. Escrever nas páginas em branco do cérebro o que será útil para formação de nossa individualidade. Indivíduo quer dizer aquilo que é único, que não é igual a outro. Melhor ser um indivíduo construído com sabedoria. Não resta dúvida. Você não acha?

Repito: fiquei emocionado em saber de sua história.

Coringa

Vivemos um momento em que negamos a compreender o que somos, o que negamos, o que produzimos de fobias sociais. Todos que assistem ao filme Coringa - pelo menos aqueles que ouvi se manifestarem sobre o filme - preferem enxergar só o explícito: a deterioração do indivíduo pela realidade excludente de relações. Em tempos de multidões, de isolamento, redução de diálogo, a exclusão não é mais só econômica, mas também de afeto. E não é possível não enxergar isso no filme, pois ela é o marco mais explícito. Nesta semana, com o caso do garoto fotógrafo de Jundiaí, que foi exposto na rede social por estar fotografando em seu bairro por ter sido considerado um suspeito, é um caso extremo sobre essa situação. O homem passou a olhar para o outro com suspeição. Uma suspeição limite, que leva à intolerância, à agressão, à denúncia vazia. Coringa não é só o que foi construído e acuado com a construção de uma vida sem afeto, mas também e sobretudo pela falta de redes urbanas para a sociedade se incluir e se ver. Aqueles que se veem juntos, constroem juntos. Àqueles que são acusados, acuados, inculpados de se porem à margem, resta-lhes a rebelião. Todo homem é revolucionário na carência. Nunca tinha visto um filme tão prenunciador quanto Coringa. Ele merece leitura pelo que é, inclusive para definição de políticas mundiais de alteração das normas de formação afetiva do indivíduo. Spielberg também tratou do assunto em série que começa brevemente na Discovery: Por que odiamos? A visão deverá ser ainda mais dura. Quando não enxergamos ou desejamos não enxergar, estamos odiando, mas, em contrapartida, estamos gerando ódio. Se não houver uma busca de compreensão da necessidade de conciliação de afeto, ainda vai morrer muita gente.

18 de setembro de 2019

Uma poesia simpática ao musgo

Fiz a leitura dos livros Intimidade (2016) e O Ganges represado (2019), de Daniel Francoy (1979), simultaneamente com a Autobiografia intelectual, de Karl Popper. Assim, as minhas primeiras indagações sobre a poesia do autor de Ribeiro Preto (SP) se apegam a questões relacionadas à necessidade de conhecimento para a prática literária e de interferência da experiência biográfica no processo de composição. Considerando que, na visão de Popper, a Arte não é puramente expressão, mas o desenvolvimento de “habilidade artesanal e outras capacidades” para produzir com ambição, vale indagar se − para tornar-se arte − a poesia de Daniel Francoy é “a expressão de um estado íntimo, de emoção e de uma personalidade”, que revistam a sua obra com completude?

Sem intimidade com as questões da vida cotidiana de Daniel Francoy, torna-se difícil aprofundar-se na análise da interferência das questões biográficas imprimidas em seus poemas, apesar de ele ter escrito um livro sobre as experiências urbanas com a cidade de Ribeirão Preto (A invenção dos subúrbios, 2018), onde o poeta se comporta como “uma espécie nova de flaneur pós-drummondiano”, conforme descrito no portfólio do livro. E, certamente, conhecimento é fator preponderante em sua formação, pois a Advocacia inclui estudos de Ciências Humanas tal como a Filosofia. Sem desconhecer que ele declara que pratica poesia desde os 17 anos, com influências de autores canônicos irrefutáveis (Eliot, Kaváfis, Bandeira, Drummond), cabendo pressupor que é vasta a experiência adquirida através do contato com a obra de outros poetas.


Optar-se pela temática da cidade já é uma decisão, considerando que o poeta do início do Século XXI lida com uma série de dificuldades para definição de uma linguagem diferenciada. Há travas para escolha da temática e da forma. Qualquer caminho pelo qual o escritor se enverede, fica a impressão de que a chegada, como nas corridas de obstáculos ou de Fórmula 1, vai se dar na mesma demarcação. Dentro dessa experiência com a realidade, é necessário conformar-se ao percurso.

Alguma beleza retorna (...)
com os jovens ao redor das piscinas
Faço-me acreditar que ainda é tempo
de replantar e entregar a terra
à ingovernável resistência dos roseirais (...).

Firma-se sobre o poema “Cinzas” a crença de que “não é a podridão” que deve sobreviver. A opção de Daniel Francoy não é só pela cidade, mas, sobretudo pela esperança, na resistência dos roseirais contra a podridão. “Eu vigio a minha esperança”, intercalando gritos de denúncia contra mazelas do presente e do passado (assassinos, violência, napalm). Para essa vigília da esperança, vale-se, talvez em excesso, das raízes drummondianas.

Ainda que não tenha resolvido todos os entraves de seu processo criativo − basta ver a obsessão drummondiana e mesmo a hierarquização excessiva na composição descritiva do cotidiano −, Daniel Francoy torna-se um dos poetas que merece ser observado e ser seguido entre os tantos que tateiam e margeiam o atual percurso da Poesia Brasileira. Ele atua com a ambição de construir, de deixar algo acabado, independentemente de o destino ser previsível, com descarte do que seria só registro e anotação. Conclui seus poemas como artefato artesanal, onde qualquer nervura excedente anularia os arranjos da habilidade aplicada com propósito de apresentação de elemento que veio da realidade e que a ela terá de retornar.

Logo no primeiro poema do livro Intimidade, que pelo título fica deliberada a decisão de não se afastar excessivamente de si e do que envolve seu percurso, os versos “os dias retornam à repetição” e “muitas raízes entre a terra revolvida”, indicam que a composição vai ocorrer a partir da tradição pré-existente no terreno a ser palmilhado (devastada?). A escavação vai se dar – e se dá – em solo ocupado. No entanto, alguns podem plantar desânimo e outros podem decidir por sementes de cânhamo. O problema, então, não é a terra que se escava, mas a forma como autor decide entrelaçar as próprias raízes para sobressair entre as demais.

Na evolução do poeta Daniel Francoy – citemos os poemas “Aurora” e “Claridade” –, o processo de criação se cristaliza em peças espontâneas, inteligentes, dando a impressão de que o tema em si é o menos relevante. O poema é o poema e não a “aurora” ou “claridade”, realizando-se dentro de choques de elementos, “leite negro derramado/sobre um início de luz, sobre/uma pétala oscilante de claridade, /que não cai e não plana (...)”. O artesanal será sempre o mesmo em qualquer produção poética: choque de elementos antagônicos (leite negro/pétala oscilante de claridade), aliterações quase óbvias em ro e ra (claro-escuro da aurora), em s/e (secas, escuras) e ainda alguma repetição (a palavra treva/a palavra sem frutos). O poema com suas respirações internas, em repetições que se alternam com sutil troca de elementos, enfim. Francoy não vem só para dar um oi − obriga-nos a respirar com a sua poesia.

Seguindo a ordem dos poetas canônicos por ele adotados, há a visibilidade de Kaváfis nos versos “os bárbaros que já aqui chegaram/e construíram família”. Discordo, às vezes, da modalidade de notação do tempo adotada por Francoy. É desnecessário, por exemplo, colocar a palavra hoje num verso como este: “Hoje as ruas estão ermas”. A expressão “já aqui” também funciona como uma expressão delimitadora de tempo, inibidora do aumento do significante e da sonoridade do verso. No poema “Cinzas”, poderia ser eliminada a expressão “no final dos dias” para desaparecimento do tom naturalista imprimido à peça poética. De qualquer forma, “hoje” “todos os dias”, “no final dos dias” e “já aqui” não serão um dia ou os dias ou um local específico. Nada se acrescenta a um poema com a datação de uma noite, deste dia, ou qualquer outro acréscimo. Nada se acrescenta ao poema com o verso “Outra noite saímos”, a não ser algo de prosaico. O que se deve destacar, como bem diz Popper, é a habilidade artesanal de tratamento para amplitude do significado daquilo que está sendo abordado ou criado. É importante a eliminação de qualquer elemento que funcione como uma placa num edifício. Mas a atualização da expressão de Kaváfis demonstra a ambição de Daniel Francoy de participar de forma crítica de seu tempo, onde os bárbaros somos nós ou estão instalados “já aqui” ao nosso lado. Se os bárbaros somos nós, nós somos a solução; se eles se instalaram em nossa realidade, eles não são um problema.

Como estamos falando de Kaváfis, importante lembrar que ele sempre reconstruía seus poemas. Mantinha uma bancada em casa, onde os poemas impressos eram mantidos em pilhas soltas. Montava reunião de poemas para distribuição de coleções deles presas por grampos. Quando refazia um poema, enviava-o a quem detinha uma dessas coleções para que fosse feita a substituição. Portanto, é natural que, com a evolução do conhecimento dos aspectos artesanais do processo criativo, o poeta possa adotar método de revisão a qualquer momento, independente de os poemas terem sido publicados. O caso de reformulação de um poema que mais ressalta na poesia brasileira é de “Mocidade e morte”, de Castro Alves, basta ver a valiosa análise de Lêdo Ivo sobre as duas versões existentes. Em estudo, Arnaldo Niskier trata do assunto:

Lêdo Ivo aponta como defeitos de Castro Alves as negligências e limitações, ''que só os poetas manifestamente geniais têm o direito e até o dever de ostentar''.

Manuel Bandeira também elogia em Itinerário de Pasárgada as alterações introduzidas no poema por Castro Alves. Portanto, “os defeitos” podem persistir nas obras dos escritores geniais. Catar feijão é uma forma de matar o tédio e buscar “defeitos” na literatura é uma forma de o leitor crítico testar a própria intolerância. O tempo e a crítica vão dizer se Daniel Francoy é um gênio, com direito a legar defeitos.

No livro de 2019, O Ganges represado, − independente de nele permanecerem momentos bem descritivos da realidade−, Daniel Francoy avança no adensamento das metáforas, na acumulação crítica de eventos históricos e detém-se na organização do espaço do poema para ebulição de alguma vida represada. Não é uma poesia simplesmente feita de leituras de Drummond, Bandeira, Eliot ou Kaváfis como ele declara em entrevista. Os “Poemas paralelos”, “O meu lugar no estado de coisas”, “Foram-se pacificamente nossos mortos”, entre muitos outros, insere Daniel Francoy entre aqueles poetas que tenho buscado pelo ordenamento do poema, por trazer dicção preocupada com o acabamento do texto, a expressão acima da banalidade virtual e de enfrentamento dos desastres impostos pela realidade. Não é suficiente o grito, mas o ordenamento do som, do muro ou da mudez. E ele se esforça e consegue transformar o existente grunhido do real em poesia. Nota-se que além da fruição e domínio do ato de compor, há esforço em ordenar a composição, ajustá-lo à espacialidade e ao equilíbrio dos significantes.
É mais fácil saber quando um poema não se realiza, que um poeta é chato, que um poema é óbvio ou banal, do que identificar um poeta que se insere numa época, com um processo criativo que valida o que produz. Acredito que nem sempre é necessário ser áspero, mas, para enfrentamento da aspereza do tempo atual, o poeta, necessariamente, deve abolir a metáfora chorangueira, mantendo a superfície espinhenta, sem eliminar de dentro algo vivo como o porco espinho. Poetas como Ronaldo Costa Fernandes e Alberto Bresciani cumprem esse papel de construção da aspereza. Alberto Pucheu e Jamesson Buarque cumprem a construção de poemas fechados, tais como verbetes de expressiva enciclopédia. Em Daniel Francoy, há sutilidade na aspereza, tanto que o poeta chega a ser “simpático ao musgo”.

Após a leitura crítica, retornei aos livros em vários momentos e os poemas continuaram a me afetar emocionalmente. Torço para que Daniel Francoy permaneça ativo, evoluindo a técnica artesanal e sempre atento ao seu tempo. A poesia está carecendo dessa franqueza, dessa energia, sem temer absorção de problemáticas cotidianas.

27 de julho de 2019

Sineta dourada

Hoje podem me visitar com narrativas bem banais
A sobrinha Hariclia para passar a tarde
e poderá arremessar no lixo os meus livros
depois de contar a inutilidade da existência
de um talher quebrado, do fungo amarelo
que nas árvores e nos frutos enfeita as cascas
Não alegarei que tenho de visitar Hari
ou de denunciar o serralheiro a surrar chapas
sobre os telhados decadentes de uma viúva
Não usarei de subterfúgios para espantar o que chega
Quem for visita em Alexandria irá se sentar
em limpas cadeiras de veludo esfarrapado
e ouvirá os poemas Itaca e Deus abandona Antônio
Com uma visita não estarei abandonado
no frio hostil aos meus ossos, na rua com ameaças
ao voo do sanhaço assustado e faminto
A visita poderá rejeitar os feitos de Hafiz,
assumir que não há fome, que não há desejo,
o destroço numa encosta ou cajás grátis
só porque são ácidos e de entremeadas nervuras
Dourada sineta aguarda quem a acionará

25 de julho de 2019

Resenha de autoria de meu amigo Wil Prado


     Luiz Philippe Torelly, premiado arquiteto, faz sua estreia na literatura com o pé direito. E pé alto, como bom arquiteto que é. “MEMÓRIA E PATRIMÔNIO” está dividido em duas partes. Na primeira, o autor invoca episódios da sua infância, adolescência e juventude em crônicas um tanto líricas, que celebram encontros pessoais, como também suas opções artísticas e ideológicas. A segunda, composta de pequenos ensaios urbanísticos — mais compromissados, talvez, com a clareza das ideias do que o rigor científico — nos remete à área patrimonial arquitetônica (menina dos olhos do autor) e à sustentabilidade cultural e ambiental, reproduzindo artigos já publicados em jornais e revistas científicas, via “Arquitextos” e outras.
     Vamos saber um pouco desse carioca-brasiliense aqui desembarcado aos cinco anos de idade, em 1960, anos da inauguração de Brasília, vindo da antiga capital, o Rio de Janeiro. Enquanto ele cumpria o currículo da adolescência, com festas em apartamentos, luaus etílicos-musicais em acampamentos à beira do Lago Paranoá ou nas cachoeiras dentro e no entorno do quadradinho.  O pai (seu maior ídolo), Eloy Torelly, nas suas horas de ócio como assessor de senador, colaborava em jornais locais, criando a coluna do “Professor Alan Bic”, onde destilaria todo o seu humor boêmio e debochado, seguindo os passos do seu famoso parente, o humorista Aparício Torelly, o “Barão de Itararé”.    
      Um pequeno perfil profissional do autor. Foi picado desde cedo pela mosca azul do socialismo, via leituras de grandes pensadores de esquerda, como Marx, Engels, Marcuse e Walter Benjamin.  Formou-se em arquitetura na UnB, e, como arquiteto, fez carreira na Caixa Econômica, com projetos premiados, destacando-se como o Arquiteto do Ano, em 1915. Mas já antes vinha flertando com a política, ligando-se ao Sindicato dos Arquitetos, que chegou a presidir, nos anos de chumbo da ditadura. Com os novos ares democráticos, viria ascender à relevantes cargos, como o de Secretário de Habitação e Desenvolvimento Urbano no governo Cristóvão Buarque e, depois, diretor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico —IPHAN.                                  
      Como não tenho formação técnica para alcançar os voos ensaísticos do autor (respeitados e premiados nacionalmente), limito-me à comentar as crônicas.  “O dia D”, que abre o volume, recorda as suas primeiras impressões ao desembarcar com a mãe e os irmãos (o pai, já em Brasília, os esperava no aeroporto) no Planalto Central do país.  Em “Esperando Vera”, vivemos a perspectiva um tanto excitante de dois jovens, em um badalado bar carioca, diante do aparecimento de um mito erótico da época, a atriz e modelo Vera Fischer. E desemboca em comentários de livros (“São Bernardo”) e autores prediletos (Sartre, Mario de Andrade, Drummond e Celso Furtado, entre outros).
       Para fechar, não resisti à tentação de transcrever essa bela passagem, que nos traz o cheiro de terra, de chuva e de infância:

                                                                               SECA
                 
             Eu gosto da seca. Do céu sempre azul. Das cores que vão gradativamente
             esmaecendo. Da obliquidade da luz. Da terra vermelha que me faz lembrar da
             infância e do caminho para a escola, da “japona” de flanela azul que minha
             avó costurava. Das manhãs e das noites frias. Das fogueiras. Do céu estrelado
             onde podemos reconhecer as constelações e sentir a amplitude do universo.
             das floradas dos ipês, das sibipirunas, das sucupiras, dos guapuruvus, das
             flamboyants, dos bougainvilles, das mangueiras, prenunciando os frutos da
             primavera. E da primeira chuva, que sentencia seu fim e espalha um perfume
             de renascimento e esperança.

     Desconfiamos que o autor tem mais crônicas engavetadas (ou pela menos adormecidas na memória), e desde já esperamos que ele venha nos brindar, senão com um novo livro, ao menos com uma segunda edição ampliada deste.



 Wil Prado
Autor de “Sob as sombras da agonia” (Chiado Editora)  e “Um vulto dentro da noite”, em formato digital, pela Amazon.

27 de maio de 2019

Mote para tempos atuais

O debate leva o indivíduo a compreender até aqueles posicionamentos irracionais que julgava irremovíveis de si mesmo. Por isso, as tentativas de negar o acesso ao conhecimento – o poder (econômico e político) sabe que, sem ele, oferecemos concordância ao que ele deseja. Sem argumentação, que gera narrativas mitológicas e de compreensão das camadas da realidade, aceitamos a proposta de ficar sem o filosófico, o antropológico, o histórico. No consumo (até a literatura e a política integram os produtos do marketing), a humanidade vai se trancafiando no ambiente depressivo. A juventude, quando descobre o processo, se filia ao terrorismo e às milícias, pois é o que lhes resta para busca de expressão corporal, de aventura, dor e surpresa. Enfim, a experiência fora do virtual.

Ser livre é poder realizar junto, mas estamos abrindo mão dessa liberdade, passando a ser vítimas, pois entregamos ao poder, sem discussão, a capacidade de decidir nossos destinos e de nossos direitos. Somos democratas quando a nossa argumentação compreende, questiona, acrescenta e participa, quando permitimos a livre criatividade e a livre informação. Só somos livres quando não somos otimizados para a aceitação da proposta, quando participamos da construção do projeto e dele usufruímos; quando somos elementos da comunidade e nos reconhecemos cidadãos.

Há urgência de ampliação dos espaços de argumentação para inclusão do indivíduo à realidade, com seus cheiros, texturas, sabores, nascimentos e apodrecimentos, para libertação do depressivo do ato de viver isolado. A literatura precisa assumir a ação profanadora, narrativa, capaz de compreender a realidade, fora das repetições fáceis das mensagens cifradas. O poeta não pode se propor a ser o sujeito da sujeição, mas ser o da criação do inesperado. Só o inesperado, que o conhecimento (aí a poesia) cria, livra o homem de ser simples dado do big-data. Só com cultura e educação o indivíduo deixa de ser incluído no algoritmo, onde somos classificados como consumidores de produtos, sejam eles a política, a geladeira ou a máscara.

5 de maio de 2019

PRADO


Volto sempre a Harold Bloom para ativar a forma de pensar e de ordenar as escolhas de leitura e, também, para que a mente não adormeça no ócio. Vejo interpretação em tudo que deposito o olhar, por isso Sinésio Dioliveira sinalizou que não fotografo, pois tiro o olhar do objeto. Preocupo-me com o que danifica a prática poética de nosso tempo. O homem atual só re­conhece o que molda em seu desejo, e desmerece o que o outro deseja ver. Bloom me socorre na questão com o conceito de su­blime, de Longino. O conteúdo de uma obra tem de nos provocar estranheza. Ocorre que não é uma estranheza por ser “estranho”, mas de espanto no espírito. Um dos versos que mais gosto é de Boris Pasternak: viver é algo mais do que atravessar um prado. Assim vejo numa tradução. Talvez pudéssemos simplificar a tradução: viver não é simplesmente atravessar um prado. Mas o que tem de es­tranheza nisso? Não é belo um prado em si e mais belo ainda, simplesmente, por hauri-lo? A estranheza, pelo menos assim vejo, é ser levado a se sentir fora da travessia do prado. Se viver fosse estar só dentro do prado, o verso não teria mais nenhum motivo de existência. Não estamos permanentemente dentro de um prado e, se estivéssemos, a vida seria assaltada por uma enorme pequeneza de possibilidades. Só teria a possibilidade do prado. Deitado em minha sala, eu diria que

Viver é estar com a porta aberta
para entrar o vento com cheiro de vento

Mas e o cheiro do prado? Do prado da beira do rio Calvo, de uma distante Rússia após algum degelo? A poesia não é dizer o que está posto no verso. É pegar o real e criar algo além do ideológico, como reconhece Bloom: o estético demanda profunda subjetividade e está além do alcance da ideologia. Então por que ele diz que falta à atualidade a presença de poetas como Emerson e Whitman para interpretação do mal-estar da cultura? Tenho algumas interpretações para a questão. Primeiramente eu con­cordo com a proposta de Bloom — no mundo da complexidade moderna, foi multiplicado o campo de ação do homem e o poeta não consegue entrar em todas as inserções da inovação. Mas, então, por que o poeta deixa de compreender pelo menos algum ângulo do seu tempo para que possa compreender a si mesmo, sem confusão do que é a lírica? Não sou lírico só quando me foto­grafo. A lírica ocorre com sucesso quando o poeta fotografa com um olhar pessoal e de inteligível estranheza. O poeta — na minha parca compreensão — deixou de se submergir no prado, de intera­gir com ele para que possa se expressar com essa experiência. É necessário ter um trabalho braçal com o prado para depois ter um trabalho corporal com o poema. Eu diria mais: teme ser ideoló­gico — não no sentido partidário, mas de assunção de posiciona­mento diante das desolações de seu tempo — para depois estar imbuído de subjetividade expressiva. Só sou autêntico quando penso por mim mesmo, se meu eu corporal não se referencia pelo que encontra após o prado. Nada que expresso transportará estranheza até o outro. A poesia exige a expressão da libido do real absorvido pela individualidade do poeta. Com poesia, somos o cinamomo.

Viver é abrir a porta para entrar o vento
e atravessa a sala o prado perfumado

1 de maio de 2019

Poema sem título

Não persigo a palavra exata
ou tão afiada que parta uma laranja.
Emiti-la seria extraviar o que sou,
cortante seria destruir um talo.
Eu mesmo não me compreendo,
e se rende a areia à água,
ambos preenchemos a vala.
Eu mesmo me contradigo,
eu mesmo reformulo o que sei
e a dúvida ainda me avassala.

Quanto mais a torço e distorço
a palavra não me livra de outra fala.
Os lábios não calam, perseguem-na
quanto mais se exibe entre as talas.
Repreendo-me sempre que não sei,
sempre que a definição traz outro lado.
O que surpreende a laranja
é que nada aconteça. Balcão de feira,
melaço febril, bico de pássaro.
A sacola, as mãos de uma Natália.

A laranja aguarda ser exposta,
ser surpreendida por um fungo,
por um abrigo na cesta, na taça.
Estendem-se à minha frente as conexões
e me surpreende a incerteza
de quem entrará pela sala.
Não é a escolha que me define,
se nem posso ser laranja ou fungo.
Tenho de exigir uma surpresa
que saiba de antemão colher num galho.

Jorge Luis Borges

Manuscrito encontrado num livro de Joseph Conrad

Nas trêmulas terras que exalam o verão,
o dia é invisível de puro branco.  O dia
é uma estria crual numa gelosia,
um fulgor nas costas e uma febre na paisagem.
Mas a antiga noite é profunda como um jarro
de água côncava. A água se abre para infinitos rastros,
e em ociosas canoas, de cara para as estrelas,
o homem calcula o vago tempo com o cigarro.
A fumaça apaga cinzentas as constelações
remotas. Logo perde pré-história e nome.
O mundo não passa de umas quantas imprecisões.
O rio, o primeiro rio. O homem, o primeiro homem.

Tradução: Salomão Sousa

23 de abril de 2019

Ida Vitale


Estive no Instituto Cervantes para uma palestra proferida por Esther Blanco sobre a poeta uruguaia Ida Vitale, que recebeu nesta data o Prêmio Cervantes. Trajetória maravilhosa, com um propósito de produção escorreito e uma poesia chocante.
Ao topar com o poema abaixo, se eu fosse um animal, teria perdido um corno. Mas como este pouco humano desnorteado, devo ter perdido uma unha, um dente, algum destino.
(Foto: El Pais) A tradução do poema é minha.

Obstáculos lentos
de Ida Vitale

Si o poema deste entardecer
fosse a pedra mineral
que cai sobre um imã
num apoio abissal;

fosse um fruto necessário
para a fome de alguém,
e surgiram pontuais
a fome e o poema;

se fosse o pássaro que vive de sua asa,
se fosse a asa que sustenta o pássaro,
se próximo estivesse um mar
e o grito de gaivotas do crepúsculo
desse a hora esperada;

se as samambaias de hoje
- não as que guarda fósseis o tempo –
mantivesse-as verde minha palavra;
se tudo fosse natural e amável...

Mas os itinerários inseguros
se disseminam sem sentido preciso.
Nós nos tornamos nômades,
sem esplendores na travessia,
nem direção dentro do poema.



Obstáculos Lentos

de Ida Vitale


Si el poema de este atardecer
fuese la piedra mineral
que cae hacia un imán
en un resguardo hondísimo;

si fuese un fruto necesario
para el hambre de alguien,
y maduraran puntuales
el hambre y el poema;

si fuese el pájaro que vive por su ala,
si fuese el ala que sustenta al pájaro,
si cerca hubiese un mar
y el grito de gaviotas del crepúsculo
diese la hora esperada;

si a los helechos de hoy
-no los que guarda fósiles el tiempo–
los mantuviese verdes mi palabra;
si todo fuese natural y amable…

Pero los itinerarios inseguros
se diseminan sin sentido preciso.
Nos hemos vuelto nómades,
sin esplendores en la travesía,
ni dirección adentro del poema.

RETRATO, poema de Antonio Machado

Traduzi para meu consumo o poema "Retrato", do espanhol Antonio Machado. Trata-se de um dos poetas de minha predileção, assim como...