27 de julho de 2019

Sineta dourada

Hoje podem me visitar com narrativas bem banais
A sobrinha Hariclia para passar a tarde
e poderá arremessar no lixo os meus livros
depois de contar a inutilidade da existência
de um talher quebrado, do fungo amarelo
que nas árvores e nos frutos enfeita as cascas
Não alegarei que tenho de visitar Hari
ou de denunciar o serralheiro a surrar chapas
sobre os telhados decadentes de uma viúva
Não usarei de subterfúgios para espantar o que chega
Quem for visita em Alexandria irá se sentar
em limpas cadeiras de veludo esfarrapado
e ouvirá os poemas Itaca e Deus abandona Antônio
Com uma visita não estarei abandonado
no frio hostil aos meus ossos, na rua com ameaças
ao voo do sanhaço assustado e faminto
A visita poderá rejeitar os feitos de Hafiz,
assumir que não há fome, que não há desejo,
o destroço numa encosta ou cajás grátis
só porque são ácidos e de entremeadas nervuras
Dourada sineta aguarda quem a acionará

25 de julho de 2019

Resenha de autoria de meu amigo Wil Prado


     Luiz Philippe Torelly, premiado arquiteto, faz sua estreia na literatura com o pé direito. E pé alto, como bom arquiteto que é. “MEMÓRIA E PATRIMÔNIO” está dividido em duas partes. Na primeira, o autor invoca episódios da sua infância, adolescência e juventude em crônicas um tanto líricas, que celebram encontros pessoais, como também suas opções artísticas e ideológicas. A segunda, composta de pequenos ensaios urbanísticos — mais compromissados, talvez, com a clareza das ideias do que o rigor científico — nos remete à área patrimonial arquitetônica (menina dos olhos do autor) e à sustentabilidade cultural e ambiental, reproduzindo artigos já publicados em jornais e revistas científicas, via “Arquitextos” e outras.
     Vamos saber um pouco desse carioca-brasiliense aqui desembarcado aos cinco anos de idade, em 1960, anos da inauguração de Brasília, vindo da antiga capital, o Rio de Janeiro. Enquanto ele cumpria o currículo da adolescência, com festas em apartamentos, luaus etílicos-musicais em acampamentos à beira do Lago Paranoá ou nas cachoeiras dentro e no entorno do quadradinho.  O pai (seu maior ídolo), Eloy Torelly, nas suas horas de ócio como assessor de senador, colaborava em jornais locais, criando a coluna do “Professor Alan Bic”, onde destilaria todo o seu humor boêmio e debochado, seguindo os passos do seu famoso parente, o humorista Aparício Torelly, o “Barão de Itararé”.    
      Um pequeno perfil profissional do autor. Foi picado desde cedo pela mosca azul do socialismo, via leituras de grandes pensadores de esquerda, como Marx, Engels, Marcuse e Walter Benjamin.  Formou-se em arquitetura na UnB, e, como arquiteto, fez carreira na Caixa Econômica, com projetos premiados, destacando-se como o Arquiteto do Ano, em 1915. Mas já antes vinha flertando com a política, ligando-se ao Sindicato dos Arquitetos, que chegou a presidir, nos anos de chumbo da ditadura. Com os novos ares democráticos, viria ascender à relevantes cargos, como o de Secretário de Habitação e Desenvolvimento Urbano no governo Cristóvão Buarque e, depois, diretor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico —IPHAN.                                  
      Como não tenho formação técnica para alcançar os voos ensaísticos do autor (respeitados e premiados nacionalmente), limito-me à comentar as crônicas.  “O dia D”, que abre o volume, recorda as suas primeiras impressões ao desembarcar com a mãe e os irmãos (o pai, já em Brasília, os esperava no aeroporto) no Planalto Central do país.  Em “Esperando Vera”, vivemos a perspectiva um tanto excitante de dois jovens, em um badalado bar carioca, diante do aparecimento de um mito erótico da época, a atriz e modelo Vera Fischer. E desemboca em comentários de livros (“São Bernardo”) e autores prediletos (Sartre, Mario de Andrade, Drummond e Celso Furtado, entre outros).
       Para fechar, não resisti à tentação de transcrever essa bela passagem, que nos traz o cheiro de terra, de chuva e de infância:

                                                                               SECA
                 
             Eu gosto da seca. Do céu sempre azul. Das cores que vão gradativamente
             esmaecendo. Da obliquidade da luz. Da terra vermelha que me faz lembrar da
             infância e do caminho para a escola, da “japona” de flanela azul que minha
             avó costurava. Das manhãs e das noites frias. Das fogueiras. Do céu estrelado
             onde podemos reconhecer as constelações e sentir a amplitude do universo.
             das floradas dos ipês, das sibipirunas, das sucupiras, dos guapuruvus, das
             flamboyants, dos bougainvilles, das mangueiras, prenunciando os frutos da
             primavera. E da primeira chuva, que sentencia seu fim e espalha um perfume
             de renascimento e esperança.

     Desconfiamos que o autor tem mais crônicas engavetadas (ou pela menos adormecidas na memória), e desde já esperamos que ele venha nos brindar, senão com um novo livro, ao menos com uma segunda edição ampliada deste.



 Wil Prado
Autor de “Sob as sombras da agonia” (Chiado Editora)  e “Um vulto dentro da noite”, em formato digital, pela Amazon.

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