Para
Jacinto Guerra
Não sei aquilatar quanto de cinzas ainda ocupa minha
visão para ultrapassar as multifaces do romance A cidade e as serras, de Eça de Queiroz. Li na juventude O crime do padre Amaro e, há uns
três anos, Os Maias. Não sei
quando fiz a primeira leitura de O
Mandarim, que foi refeita agora com outro olhar, mas que sempre me abriu
fundas estradas na imaginação, pois é impossível sairmos ilesos do terreno das
fábulas.
Acredito
que, em A cidade e as serras (não
sei por que ao tratar dessa dicotomia põe a cidade no singular e as serras no
plural, pois não é só Paris, no final do século XIX, que expressa os efeitos da
industrialização), Eça de Queiroz faz um ajuste de contas com o sentimento de
desconforto do seu tempo e também com as angústias pessoais. Constrói fabulação
que irá contrapor a Schopenhauer e também a construção da ambiência da amizade
e da família para enfrentar a história pessoal. Eça foi criado pelo avô como se
fosse um bastardo depois de renegado pelos pais que o conceberam antes do
casamento.
O
personagem principal de A cidade e
as serras, Jacinto, é construído na voz de um segundo personagem, o
narrador José Fernandes. Ambos herdeiros de famílias rurais portuguesas, que
vivem em Paris na primeira parte do romance, imersos na futilidade do inútil
conforto da vida moderna, que, pela nascente industrialização, sabe apenas
construir caixas e caixas de objetos que podem ficar abandonadas no meio do
caminho sem apresentar nenhum prejuízo ao percurso dos seus donos. Enfim, esses
personagens cansam da metrópole e precisam retornar às origens para retomar a
originalidade espontânea da natureza, mesmo quando ela ruge tempestades sobre
os inquilinos da terra.
Desde
a juventude, nunca tive dificuldade com o estilo ímpar de Eça, num português
exemplar que chega a ser chato, parecendo arcaico. Se vivi num mundo arcaico,
quase colônia perdida de portugueses antigos no perdido interior de Goiás, a
linguagem arcaica me é familiar. Em A
cidade e as serras, estranhou-me a o diálogo monossilábico, mas também
isso, no estilo de Eça, também me é familiar, pois na família goiana arcaica o
diálogo não é expansivo, se as expressões da fala são notas pontuadas, que
denotam apenas a confirmação presencial do fato. Pois então. Veja este diálogo
do romance:
Jacinto adiante, na sua égua ruça, murmurava:
- Que beleza!
E eu atrás, no burro de Sancho, murmurava:
- Que beleza!
Em
três outros momentos, Eça me emocionou ao eriçamento da pele.
No
instante em que o narrador vai denunciar a exploração do homem do campo,
aparece o movimento socialista nascente na época, que certamente afetou o
romancista. A “Civilização reclama insaciavelmente regalos e pompas, que só
obterá, nesta amarga desarmonia social, se ao Capital der ao Trabalho, por cada
arquejante esforço, uma migalha ratinhada”. Até os grandes escritores cometem
os seus cacófatos (por/cada), mas não erram na notação do real. E, adiante, o
burguês rural, indiferente ao que ocorre na sociedade, irá descobrir e atuar
para se redimir perante a classe trabalhadora.
Para
o narrador que foge do romantismo e do realismo, procurando ingressar numa
radicalidade moderna, Eça tem de fazer sua entrada na natureza enfrentando esse
rito de passagem. Num mesmo parágrafo se mantém romântico (Por toda parte a
água sussurrante, a água fecundante...), ou se mantém simbolista nas repetições
(Brancas rochas, pelas encostas, alastravam a sólida nudez do seu ventre polido
pelo vento e pelo sol; outras, vestidas de líquen e de silvados floridos,
avançavam como proas de galeras enfeitadas); mas realista social, por que não,
utilitarista capaz de presenciar o lucro na fartura (notou a robustez e a
fartura das oliveiras).
Nesse
que é quase uma obra póstuma, pois Eça faleceu quando revisava as suas provas,
há uma antevisão da época e também premonição do que viria a ser o confronto
entre conhecimento e utilitarismo. Jacinto se envolve em projeto social junto
aos seus trabalhadores e, após os personagens estarem instalados e organizados
no meio rural, onde reina a natureza, a organicidade, o narrador retorna a
Paris. Para formular a premonição de confronto do homem que virá, ele vai parar
por acaso num ambiente universitário – num episódio quase
extemporâneo dentro da narrativa só para a fabulação do futuro –, só para
que dentro de uma aula um estudante, “abortozinho de rapaz”, berre contra o
narrador, isto é, contra o ensino de humanidades: “Sale Maure!”. Na antepenúltima página do romance, este grito de
“mouro imundo” expressa a repugnância da modernidade que se aflora no despertar
do Século XX contra as doutrinas consideradas inúteis, que não geram lucro, bem
como antecipam a movimentação social de intolerância, na Europa, contra algumas
raças. Se Eça estivesse por aqui iria ver como esse berro ecoa ainda mais alto
na pós-modernidade.
Assim
como em O conformista, de
Alberto Moravia, o narrador acaba não de envolvendo nalguma resistência, pois,
em vez de promover enfrentamento deste caos que se descortina no cenário
europeu, que iria culminar na instalação de governos totalitários e na
deflagração de guerras mundiais, prefere fazer um retorno de se entocar n”as serras”
e, certamente, assistir à distância o movimento dos canhões. E quem não
enfrenta acaba contribuindo para a evolução de movimentos destroçadores da
ordem da Humanidade.
Ao
longo da escritura destas notas, reli O
Mandarim. Encanto de narrativa fantástica, que denuncia, certamente, o
colonialismo. Depois de tocar a campainha de se apossar
dos bens de outros povos, nada mais resta para reparar a destruição que o gesto
acarreta. Portanto, Eça de Queiroz não é só artesão da língua portuguesa (para
ele, uma viagem não é simplesmente embarcar, uma partida, mas “pus a proa ao
Oriente”), sobretudo é o cronista visionário do fim de uma época, de uma virada
de século.