16 de julho de 2018

Quem se preocupa?

Só tem o grande ditador porque tem a legião
dos pequenos ditadores.
Os pequenos ditadores dizem que querem arma
e o grande ditador providencia o arsenal.
Os pequenos ditadores exigem uma única estrada
e o grande ditador providencia
uma legião de pequenos ditadores
para cercar todas as demais estradas.
Os pequenos ditadores querem cura gay,
querem todos na mesma catedral,
querem todos mostrando só um olho,
e o grande ditador define grandes campos
para aprisionar a criança que tem dois olhos,
a mãe que tinha a velha e limpa catedral,
quem podia calçar um sapato amarelo,
usar uma fita adesiva e dançar.
E os pequenos ditadores começam
a grande denúncia. – Separa aqui
os filhos dos pais, – cura aqui a minha irmã
– atira aqui no que arrasta sua miséria,
porque os pequenos ditadores
denunciam, e quando um pequeno ditador
quiser cortar um pedaço de sua manga
também será arrastado para o aprisionamento.
O grande ditador começa a ter medo
pois já matou dez, já aprisionou mil,
e passa a andar no meio de um exército de cem,
depois com um exército de dez mil,
e depois faz seus pronunciamentos
para um exército de milhares
que só podem ouvir um único canal
que repete o mesmo pronunciamento
de dez em dez minutos.
O grande ditador para se defender de um precisa de cem;
para se defender de cem,
precisa de um exército de dez mil.
E temos o grande medo e a grande desconfiança.
E temos as pequenas cartelas
para enfrentar as filas das pequenas rações.
E passam os anos e os pequenos ditadores
que não foram chamados para ser
assalariados na guarda do ditador
tem de começar todo um trabalho
para derrubar o ditador.
E começam a morrer os pequenos guardas ditadores
e os pequenos ditadores famintos, se não
morreram de fome, serão mortos no fuzilamento,
irão definhar com o rosto na cerca de arame.
Quem já guardou um pedaço de fita
para enfeitar o seio,
que guardou um olho para usar dois olhos?
Quem se preocupa com a mãe e o filho?
Quem se preocupa?
Se agora está sendo dependurado um gancho
por aquele que não se preocupa,
quem não se preocupa poderá um dia
estar dependurado num gancho.
Quem não se preocupa já perdeu um dos olhos.
Quem zela do segundo olho tem dois olhos.

Cidade visível


Na primeira cidade encontrei pessoas sábias e ignorantes,
algumas que soltavam fogos quando chegava o descendente
de perpetuar a fidalguia da família e a habitabilidade das ruas,
que sem habitantes novos as casas ficam taperas
e depois se desmoronam pela ação dos corós nas madeiras
e da chuva a empurrar ano a ano as telhas até lançá-las podres
e em cacos ao chão.
Era uma cidade que não foi mencionada por Marco Polo
nos muitos relatos a Kublai Khan, mas que tinha joões-de-barro
que se acasalavam depois de arruaças exaltadas
e que pagou sua conta de butim após as raras invasões
das ordas dos tártaros, que ali podiam ser chamados de banqueiros.
Para que um não tivesse sossego, outro arrumava um chuço
e seguia atrás a cutucá-lo para que a inquietude fosse constante.
Não menciono o cio dos gatos e o ruivar dos cães,
que esta é a maneira que o silêncio encontra para se interromper
e os ouvidos não assoviarem internamente por nada.
Tem, no entanto, a raridade de um camelo que bebe água
na poça se há o esquecimento de um baldio na lateral de um bairro,
pois a imaginação tem de trazer outros habitantes para a cidade,
e acabam sendo os mais úteis e interessantes.
Depois que muitas telhas apodreceram, ratazanas se mostravam
serelepes perto das estações e das calçadas, e garotas
desejavam coletá-las em bolsas quentes e domesticá-las
para que não passassem fome e a família já se divertisse.
Enquanto as ratazanas se divertem junto aos pombos
e os pais impedem as filhas de recolhê-las para refúgio quente
passa um homem coxo empurrando o carrinho
com coentro jiló varas espetadas com três pés de alface cada.
E o homem das verduras vai dando bom dia a todos que estão rua
e alguns respondem e outros acham impertinente o bom dia de um coxo
e depois se refestelam com o guisado temperado com o coentro
regado com água reutilizada dos esgotos e o mijo de um coxo.
Era uma cidade que não tinha nada de estúpido.
Os casais trocavam as agendas só para confirmar
os casos extraconjugais, e haver aceitação depois dos gritos.
Assim se descobriu na cidade que os gritos limpam pigarros,
espantam pássaros e atraem o vendedor de ovos até a porta.
Os habitantes eram cordatos. Alguns fazem algazarra
até alta madrugada, acelerando os carros para recarregar as baterias
e a música não seja intermitente. Depois dormem até alta manhã
e quase viram o dia adormecidos só para que o coxo
e os velhos insones não digam que não desfrutaram do silêncio.
Na primeira cidade, às vezes cai uma calha
e às vezes calha de haver homens ignorantes e sábios.

Delmo Montenegro




De vez enquanto me defronto com um livro de Delmo Montenegro nos montes de queima das livrarias (atraem-me os livros de ponta de estoque, pois geralmente sobram aqueles de aventuras experimentais, obras que não atraem consumidores em busca por diversão, confiantes naquilo que está aclamado pela crítica ou mesmo por temas de fácil compreensão para o nível de formação dos leitores em causa). Manuseio o exemplar e fico ali estupefato diante da somatória de desenhos e dispersão das palavras em busca de junção que me esclareça ou comova algum dos meus nervos.
Ciao cadáver, além de outras visualidades, contém diversas gravuras recortadas de partituras musicais. A primeira dificuldade advém de meu despreparo para leitura de qualquer notação musical. As notas abaixo ou acima na ordem das linhas não passam de pássaros que decidiram se assentar numa determinada ordem dos fios, e não em outra diversidade. Podemos dizer que a beleza do mundo é essa casualidade da posição em que o pássaro ou o homem se instala na realidade. E por que não podemos dizer o mesmo da poesia? O poema é a junção de determinados elementos que o poeta arrancou de seu inconsciente para estruturar um arranjo que possa ser exibido. Dois poetas jamais poderão compor um poema de forma idêntica, se suas “tabula rasa” não se correspondem no preenchimento.   
Delmo Montenegro vem de uma corrente da poesia em que se agregam poetas autoconfiantes na política de divulgação que estabeleceram e na poética econômica de composição que vêm definindo, sem prática da expressão lírica, talvez de exigência de interpretação para impor significado ou aproximação do leitor à abertura expressiva do texto poético. Nem sempre o leitor consegue aproximar-se do texto já que não está ou não participou do universo arqueológico do autor. Uma corrente em linhagem direta de Sebastião Uchoa Leite e que conta com Frederico Barbosa como expressão máxima. Delmo Montenegro desalinha o seu tanto com o grupo em razão da inserção da visualidade e da soltura das palavras, eliminando a necessidade da constância frasal. Tanto poderá ser uma obra que servirá de marco como outra qualquer que apodrecerá com o monturo. A edição de Ciao cadáver é de 2005. Faço a leitura em 2018. Um período agourento de 13 anos. Como não estou aderido ao agouro, não posso decretar o seu falecimento, prefiro insurgência ou ressurgência.
Num primeiro momento, por não dominar o italiano e muito menos qualquer língua, achei que o título do livro do Dalmo Montenegro quisesse dizer “Tchau cadáver”, mas aí não corresponderia à realidade de um tempo de derruição, de desventura, pois estamos vivendo um momento de convivência morta, suspeita, indiferente. Não conseguimos satisfação dentro da ordem ou desordem da cidade, do trânsito, de nosso quarto, de nossa política, do diálogo. E muito menos da linguagem da poesia. Dei a googuda e descobri que o título remete – com justiça – para esta necessidade de o poeta se deparar com a sua realidade, coabitar com ela, com ela se confundir.
“Ciao” foi escolhida como uma luva para fazer o arranjo poético do tempo que vivemos, pois é uma palavra que não só dá adeus ao cadáver, mas, acima de tudo, saúda o nosso tempo, que é um cadáver que se exaure e expõe a podridão. Ei, oi, olá, cadáver, o poeta te saúda. E saúdo a ousadia de Delmo Montenegro pela coragem de incomodar a leitura ou a inleitura com o seu livro Ciao cadáver.
É um livro que, se não move nenhum dos meus nervos, empurra-me para outro espaço da habitação da poesia. Sinto, com esse livro, que muita poesia que se faz, atualmente, não chegou nem à infância do que é preciso ser feito da linguagem poética num tempo de exaustão. Sou um G. H., pois se não consegui engolir a barata, pelo menos a deixei na boca para aumentar a salivação. Quem não se permite salivar com a estranheza não compreende a sobrevivência. A sobrevivência da poesia depende da experiência e de novos arranjos dos elementos que vão entrando no insciente dos poetas.
Leiamos Byung-Chul Han e vamos ver que a realidade não está fácil e, no entanto, pode ser compreendida e vivida. Toda realidade, enfim, é vivenciada. Não há fuga. O niilismo tentou tirar o real ou o homem da real, mas tudo continua aí. Falta cair na real e se ordenar dentro de um novo arranjo, inclusive num novo arranjo da dicção, da expressão de si mesmo. O que me expresso não me interessa mais e muito menos interessa ao outro. Vamos em frente então com a possível ou implausível linguagem, ou não-vida. Olá, cadáver. Para haver um cadáver, o homem é o assassino. O homem assassina a realidade e, dentro dela, assassina a linguagem.
Não precisamos nos desiludir nem como críticos nem como assassino. Só com o assassínio há inversão ou reinvenção. Por que a guilhotina sobreviveu até 1977? Produzimos para o monturo, para picotar e reciclar. Reproduzimos para aprisionar e decapitar.

RETRATO, poema de Antonio Machado

Traduzi para meu consumo o poema "Retrato", do espanhol Antonio Machado. Trata-se de um dos poetas de minha predileção, assim como...