15 de janeiro de 2023

A desconstrução pela alteridade

Como seria se eu estivesse do outro lado?
Qual seria o meu prazer
em quebrar o relógio do tempo,
furar uma pintura de Di Cavalcanti
ou defecar num pequeno monólito?

Por mais de quarenta anos eu fui íntimo de algumas das obras danificadas durante o ataque terrorista às sedes dos Três Poderes. Por inumeráveis vezes, para descanso ou para aguardar um amigo ou autoridade, sentei-me nas cadeiras de Oscar Niemeyer, tendo como vista de horizonte o jardim interno da Câmara dos Deputados com paredes de azulejos de Athos Bulcão. Por vezes, a água da chuva; por vezes, os jardineiros organizando as ramas. Eu, Marlan Rocha e Orlando Tejo discutindo a transposição do Rio São Francisco e a obra de Patativa do Assaré.

Edgar Morin diz que após a queda de Hitler, foi perdido o prazer de ter contato com a Poesia. E este é o meu desencanto. Como retomar o assento com um amigo que passou a estar enamorado do autoritarismo? Que, certamente, esteve a ponto de me denunciar por ter conhecimento para não me deixar encantar pela nova mercadoria do liberalismo (a mentira)? Para que eu me encante por alguém, os seus pensamentos precisam apresentar alguma jusante com os meus, como no Tao, onde as águas se encontram. Queiramos ou não, as águas vão dar no mesmo vale.

Carregamos mais angústia, nestes momentos, do que vontade de escrever e de retomar amizades que admirávamos e foram infestadas por algum vírus daninho. Um ator declarou à imprensa esse seu mesmo sentimento: um fascista não merece ser artista. Se eu me bandeasse para a loucura de domínio do poder pelo militarismo, esse seria o meu sentimento. Eu me sentiria indigno de ser artista, indigno inclusive de participar das entidades culturais. Iria me sentir indigno de ter amigos.

Nestes dias de estupefação política, revi alguns poemas e me ocupei com filmes europeus, sobretudo de Agnès Varda (essa intérprete das imagens de construção poética quando da abordagem do cotidiano). Agnès Varda é exemplar em demonstrar que não podemos nos deixar ser engolidos pela depressão. Sempre alcança uma alegria a partir do depoimento mais desagradável de um entrevistado ou do encontro com a derrota de um desvalido.

Ainda assim me assola o desânimo. Um vizinho retorna do QG, com o carro todo embandeirado e manifesta de forma deseducada o seu perfil fascista. Põe o som automotivo nas alturas para mostrar que não está preso e, em seu ponto de vista, para afirmar que a sua razão não foi abalada. Aquieto-me, pois num clima similar ao hitlerismo-stalinismo, podemos ser atingidos como ocorreu com os prédios dos Três Poderes.

A poeta Kamilly Barros me envia uma mensagem animadora.

Apesar dos ataques dos que não têm o fair play, ele (o ano de 2023) será vermelho-esperança. (...) E que haja muita poesia em nossas vidas.

Digo-lhe que, no meio desse pandemônio em que estamos, a sua mensagem é brisa de bálsamo e que, certamente, vamos nos encontrar no decorrer desse ano. E fiz alguns questionamentos sobre minha leitura atual de Edgar Morin.

Só nos localizamos no mundo com indagações. O que é importante para mim, em que acreditar, em que pensar, onde eu estou, quem eu sou, são perguntas de Morin. Temos de fazer as nossas:


O lado do outro é meu lado?
O que desejo interessa ao desejo do outro?
O que faço é uma contribuição
para o processo de avanços da Civilização?
Será que ainda nos interessa sermos civilizados?

Morin adverte que “uma verdade parcial é suficiente para erros globais” e que “a verdade total é um erro total”. E assim temos de ficar com Popper: a razão é aquela que decidimos juntos, pois só a razão comum nos interessa. “Sigamos juntos, então, tu e eu”, como inicia o belo poema de Eliot.

Complemento as minhas dúvidas, que foram a razão desses rascunhos desconexos. O que adianta o conhecimento que adquiro se ele não contribui para construir a harmonia social ou o ordenamento político-social? O conhecimento fechado em si mesmo, que não participa, não faz nenhuma demolição, assim como não adianta uma força represada num músculo. Aquele que quer domínio, sempre procura rechaçar quem sabe. E quem está cego não compreende o processo e fica tão siderado com as verdades absorvidas através do massacre da mentira, que passa a se sentir num hospício, apesar de não desistir de julgar-se dono de todo espaço de poder. Passa a nos odiar com tamanha profundidade, mas, na impossibilidade jurídica de nos eliminar, sai de sua casa para vir urinar em nossa porta. (Sempre recorro a essa imagem forte, pois ela ocorreu de fato, apesar de eu não me encontrar em casa no instante da prática do ato.)

Quem sabe não pode se intimidar. É mais confortável adotar o silêncio, mas as ameaças são idênticas se adotamos o silêncio ou o pronunciamento. Pelo menos o pronunciamento gera alteridade. A alteridade é o confronto dos indivíduos, com suas dúvidas, suas realidades, de onde são sacadas descobertas e esclarecimentos. Com a alteridade, sentimos que não podemos sair por aí a sacar pedras e cobras e lagartos. Sendo assim, ainda que impere profunda animosidade ou risco, não podemos perder a disposição de participar do diálogo e do confronto crítico com o outro. A alteridade é um confronto sem armas. Um personagem infantil de Agnés Varda diz que gosta de pescar, mas sem pegar o peixe. Quem dialoga não se preocupa em impor, mas em encontrar.

A amiga Kamilly Barros complementa, destacando que o meu “sentido de Civilização é o cuidado com o outro, da atenção, da gentileza, é um bálsamo para mim (Kamilly), uma brisa, e para todos os que recebem esses gestos tão delicados e que repercutem dentro de si”. Para ela, as indagações de Morin são fundamentais, pois “nos levam a indagar se a Civilização não precisa estar pautada mais na alteridade do que no Poder, para conciliar desejos tão díspares e não nos machuquemos. Uma alteridade que nos sustente uns aos outros”.

Kamilly lembra que está na faculdade de filosofia fazendo estudos que “tratam da construção de si a partir do embate com o social”. Ela prossegue refletindo se os modelos atuais de Civilização não estão funcionando sem pensamento crítico e se eles não poderiam sem desconstruídos. Ao final de sua mensagem, ela conclui que alteridade tem de fazer parte dos modelos de Civilização para que possamos sentir que são as nossas criações que nos dão Poder.

Importante lembrar que a alteridade só pode ocorrer no embate de grupos divergentes para ser eficaz. Quando pensamos entre iguais, não reconstruímos o que pensamos, não desejamos que o outro participe do Poder e muito menos nos sentimos integrados no sentido de nacionalidade. Só o embate divergente desconstrói certezas infundadas que foram instaladas em nosso consciente. Ou, se nossos espasmos carregam certezas, esses serão acolhidos para construção de espaços comuns e pacíficos. Só indivíduos sadios − sem contaminações, que não partam de patrocínio de interesses setoriais − constroem democracias respeitadas e sadias. A democracia não é uma mercadoria exposta na vitrine a ser comprada com a cotação do dia ou que se imponha com cassetete.

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