Para
não continuar morrendo de inveja das conferências fictícias de Eliot no livro de
perfeição incontestável de Gonçalo M. Tavares, isolo uma frase do romance As vidas de Dubin, do norteamericano
Bernard Malamud, para uma análise também fictícia, pois tudo que gira na esfera
do teórico é imaterial.
Bernard
Malamud é mestre na inserção de silogismos poéticos de extrema sabedoria em
suas narrativas. No entanto, nem tudo que é sábio carrega praticidade no
momento de aplicação nos atos de enfrentamento da realidade. A poesia e a
sabedoria não existem para serem postas em execução na práxis. A poesia e a
sabedoria existem para enlevar, engrandecer, deixar evidente que em algum
momento o indivíduo pode agir heroica e belamente.
Em
minhas análises da frase de Malamud, não vou ter em mente o personagem romanesco
a que ela se refere, mas o homem enquanto ser presente na realidade,
materializado, que atua, constrói e destrói, pois, o ato de devorar exige
materialidade tanto do devorador quanto do elemento a ser consumido ─ exige
presença e resistência corporal um frente ao outro. As águas devoram as
margens. O mar devora o barco. O convidado devorou a galinha caipira. A mó
tritura o grão. Avalio que é no mínimo estranho dizer – devorou o romance em três dias. Devorar é comer, é destroçar com
ligeireza. E para comer um livro não são necessários três dias. Pode-se muito
bem comê-lo em dez minutos; vamos, então, admitir que um livro possa ser
devorado em meia-hora para não perder a elegância das boas maneiras à mesa e
também para não prejudicar a digestão.
Mas
passemos à frase silogística em questão:
“Às
vezes sentia-se como uma formiga pronta para devorar um carvalho.”
Numa
análise inicial, é uma assertiva gastronomicamente correta, pois a formiga e o
carvalho pertencem à materialidade do mundo. Podem ser colocados num campo de
enfrentamento. A formiga, ou seja, o homem pode devorar, bem como o carvalho
pode ser devorado. No entanto, pode-se dizer que é ecologicamente incorreto. A
legislação já não admite que se possa sair por aí devorando impunemente
qualquer árvore.
É
possível encontrar carvalhos em quase todos os continentes do Planeta,
principalmente nas regiões tropicais. Talvez só os habitantes dos polos
tivessem dificuldade de executar a decisão de devorar um carvalho, pois teriam
de se deslocar para regiões distantes. Mas aquele que for procurar um carvalho
para devorar terá dificuldade de encontrá-lo, pois já foi devorado à exaustão
quase até ser extinto em todos os Continentes.
É
importante pensar bem antes de devorá-lo, não só pelos impedimentos da
legislação ambiental, mas pelo próprio gesto ético de preservação da espécie,
pois o carvalho só floresce após completar oitenta anos de idade. E é de bom
alvitre se acautelar ainda mais, pois o carvalho tem os seus protetores prontos
a se tornarem inimigos do devorador. O carvalho é a árvore símbolo dos druidas.
Também não é recomendável devorar carvalhos na Coreia para não acontecer de
engolir a alma de algum coreano, já que naquele país, após a morte, as almas se
instalam no tronco destas árvores. E nem na China, onde elas são plantadas sobre
as sepulturas para impedir que as almas se evadam. Portanto, ao se arrancar um
carvalho na China está sendo aberto um santuário de mortos, que poderá liberar
almas que irão enfrentar iradas o devorador. Ou então festejar o glutão, já que
as almas liberadas poderão se sentir felizes de escapar da morada eterna ou no
mínimo milenar.
Trata-se
de uma árvore que vive de quinhentos a mil anos. Quanto mais intempérie
enfrenta mais fortalece as raízes no solo para garantir a sobrevivência
milenar. Assim, quem for enfrentá-lo, tenha bons dentes, já que o carvalho,
como bom adversário, sabe se defender com a rigidez de um bom combatente. Após
a decisão de devorar o carvalho, lembrar-se de aproximar com exaustiva cautela.
Como é uma árvore que traz inúmeros troncos rasteiros milhares de vezes maiores
que uma formiga, bem pode acontecer de aprisionar o devorador sob um destes
galhos como inimigo ínfimo. Bem como não deve ser escolhido para a devoração aquele
carvalho que está plantado no meio do Jardim, conforme assinalado pelas
Escrituras, para não ser desequilibrada a estrutura bíblica do Éden.
“Sentir-se”
é uma expressão que deixa alguma dúvida para a execução do projeto de devorar uma
árvore. Aquele que sente não é o mesmo que se preparou com rudimentos
científicos e materiais para conhecer e executar aquilo a que se propõe. O
sentimento serve apenas para assumir algo que apresentará resultados
aleatórios. O homem pode sentir o calor, mas não pode carregá-lo; pode sentir o
amor, mas não pode vendê-lo aos quilos; pode sentir o azul, mas não pode
pesá-lo. Poderá sentir que pode carregar cem vezes o seu peso, mas acabará
triturado, amassado ao levá-lo às costas. É de supor, então, que ao se sentir
uma formiga o homem esteja pronto a carregar até cem vezes o seu peso, isto,
oito mil quilos se for um de oitenta quilos; ou seis mil quilos se tiver
sessenta.
Aquele
que vai devorar um carvalho, além de sentir-se pronto, tem de estar preparado
para a tarefa. Como um carvalho não pode ser devorado de uma única vez, já que tem
um volume centenas de vezes ao do homem, algum armazém deve ser preparado de
antemão para guardar os galhos picotados, as folhas ensacadas, as raízes e as
cascas moídas e as bolotas assadas. Além de exigir que algum elemento de
transporte esteja disponível para deslocar até o armazém a árvore desmontada.
Suponhamos,
no entanto que a árvore seja um projeto imaginário. Uma metáfora. O homem estar
pronto para devorar uma cidade, um país, uma terra estranha. Um curso de
medicina, um discurso no parlamento, no organismo internacional. Encarar o
mundo. Declarar guerra ao alienígena. Se o homem não estiver de posse de todos
os rudimentos para a tarefa a que se propôs, ele, sim, é que acabará devorado
pelo carvalho, que desabará como uma tempestade sobre o seu ínfimo corpo.
Como
gesto de reconhecimento da pequenez do homem para enfrentamento das grandes
obras, é justo e legítimo sentir-se uma formiga capaz de devorar um carvalho.
Abominável, no entanto, se o indivíduo se sentir acima dos carvalhos, maiores
do que seus contendores, e que carrega o direito de devorar toda obra milenar,
inclusive aquela instalada pelos ancestrais na medida exata do centro do Éden.
Ao
sentir-se capaz de devorar um carvalho, o homem tem de reconhecer que uma
formiga não devora sozinha a árvore. A trilha foi construída em conjunto, com
divisões de tarefas; cada formiga carregou, em diversas travessias, suas cargas
de gravetos e folhas e bolotas, num trabalho social e solidário de todo o
formigueiro.
Em
algum lugar o carvalho espera a formiga para ser devorado. Todo homem tem de se
sentir uma formiga preparada para a empreitada, com a família e a sociedade
organizada em perfeito ordenamento para executá-la. Todo homem tem de praticar
obras sobre as quais não irá tirar nenhum desfrute, mas talvez sua futura
quinta ou sexta geração. Basta ver que o homem não terá a mínima chance de
devorar o carvalho que ele mesmo plantar. O homem não trabalha, portanto, só
para si mesmo ou para seu tempo.
Cada
homem plante o seu carvalho, e dele não tirará nenhum desfrute, nem mesmo verá
a primeira floração. Sócrates, Dante, Homero, as naves de Américo Vespúcio, de
Colombo ─ deles são os carvalhos que hoje devoramos.
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