Texto de minha autoria publicado na revista nº 10 da Academia de Letras do Brasil.
Em continuidade às minhas leituras voltadas para o
conhecimento de obras relacionadas à constituição de governos totalitários, principalmente
para elucidar o extremismo político que vem conturbando vários países neste
início de novo milênio, busquei o romance Sob os olhos do
Ocidente, de Joseph Conrad, publicado em 1911 na Inglaterra, mas que só
alcançou plena acolhida seis anos depois, quando foi traduzido na União
Soviética. As constantes reedições do livro naquele país, além de se dar pela localização
de parte da ação naquele território, certamente decorreu do interesse do leitor
russo em discutir o processo revolucionário numa ótica “autocrática”
(autocracia é a denominação totalitária do regime de governo adotado no
romance), pois a União Soviética vivia o período de instauração do regime que
iria se enveredar para a intensificação das ações extremadas.
As repetições históricas de aceitação de governos
frontalmente antidemocráticos passaram a surgir, quase sempre, de conjunturas estruturais
idênticas. Fundam-se a partir do desconforto de crises econômicas, na propaganda
estatal massiva, benesses para os grupos de posse do poder, sobretudo da área
militar e de proprietários de terra. Soma-se a isso a degradação da consciência
social, com interferência, nesse processo de degradação, das agremiações religiosas
que atuam de forma faminta para impor os eternos enraizamentos dogmáticos. Esse
clima de desarranjo leva à aceitação dos tons carregados de conservadorismos perversos
para a perda dos direitos individuais.
Para conhecer a ambiência de medo, suspeição e tormento
repressivo dos estados totalitários, basta acercar-se de algumas obras de
ficção, tais como Os deuses tem fome de Anatole France, Morrer
Sozinho em Berlim de Hans Falada, O senhor presidente de Angel
Miguel Astúrias, O jogo das contas de vidro de Herman Hesse, A
revolução dos bichos de Jorge Orwell e Sob os olhos do Ocidente, de
Joseph Conrad. Muitas outras obras poderiam ser incluídas na lista,
principalmente do realismo fantástico latino-americano e da literatura de
distopia como 1984, também de Jorge Orwell, e O conto da aia, de Margaret Atwood.
No processo crítico dos regimes totalitários, os ficcionistas
preferem criar personagens baseados no homem sem escrúpulos, que passam a atuar
de forma violenta, forjados com a perda de consciência, de indiferença ao
coletivo e de desrespeito aos direitos humanos, ou naqueles indivíduos que
preferem não se envolver com o processo político. Como o personagem de Joseph
Conrad, alguns indivíduos são desenraizados. Razumov não tem experiência
doméstica, recebia “uma mesada modesta, mas suficiente, das mãos de um obscuro
advogado”, talvez seu guardião. Nem relações sociais parecia manter na cidade.
Enfim, sem relações suficientes para uma alteridade fomentadora de respeito aos
demais e de defesa de ideias revolucionárias ou libertárias. Mas é bom lembrar
que os cientistas sociais são unânimes em apontar que aquele que se omite
também está incentivando, melhor, alimentando estruturas autoritárias.
Tanto em André Gide, que reconheceu os males do colonialismo
e frustrou-se com o marxismo após integrar grupos revolucionários, como em
Joseph Conrad, os atos criminosos dos personagens desenraizados e
individualistas ocorrem quase de forma fortuita. Em Os subterrâneos do
Vaticano, Lafcadio é capaz ora de salvar uma criança ora de matar um
terrorista. Quanto a Sob os olhos do Ocidente, pensando em ganhar a
medalha de prata, Razumov corre às esferas militares para denunciar o
conspirador Haldin, provocando, indiretamente, a sua morte. O indivíduo
desenraizado não liga para o ambiente em que está instalado, pouco se preocupa
em destruir instituições ou em eliminar figuras responsáveis pela ordem e defensoras
da liberdade. Razumov irá cair na armadilha do coração ao se ver atraído pela irmã
do assassinado tão logo seus caminhos se cruzam.
A trajetória de vida do escritor Joseph Conrad, em si mesma,
já é romanesca. Órfão logo cedo, trabalhou na marinha inglesa por dezessete
anos, inclusive com tentativa de suicídio. Quando saiu dos mares, ganhou
cidadania inglesa e ninguém mais se lembra que ele nasceu na Ucrânia.
Tornou-se, assim, um dos principais autores de língua inglesa, que engendrou
grandes obras contendo tramas que se passam no mar – território que explora com
total domínio. A obra de Conrad mais conhecida no Brasil é a pequena novela O
coração das trevas, que aborda o absurdo do colonialismo na África. O
cineasta Frans Ford Copolla adaptou livremente essa obra para montar o apoteótico
filme Apocalipse Now sobre a guerra do Vietnã. Não pode deixar de ser
mencionado o romance Lord Jim, que traz como personagem homônimo um
marinheiro comerciante de armas, que passa grande parte da vida em busca de
recuperação da dignidade pessoal. Trata-se do livro de Joseph Conrad mais
aclamado mundialmente. São livros incorporados ao acervo da Literatura Universal.
Frente à experiência cultural, sobretudo a partir do romance
O coração das trevas e de seus desdobramentos ideológicos no tratamento
do tema pelo cinema, é o caso de se propor estudo para questionamento das ações
totalitárias dos países que fizeram opções por explorações coloniais. Na
maioria dos casos, são países de prática e de estrutura institucional
democráticas, mas que invadem e instauram a imoralidade totalitária na forma de
tratar os autóctones dos territórios ocupados. No livro Por que ler os
clássicos, ao destacar a obra de Joseph Conrad, Ítalo Calvino levanta essa
questão. Assinala que a crise do colonialismo, que trouxe consequências
econômicas para os países que faziam uso desse sistema, agravou o reacionarismo
de Conrad contra os movimentos revolucionários. Ao reacionário não interessa
alteração do sistema ao qual está satisfatoriamente instalado.
Ao contrário do romance de distopia 1984, de George
Orwell, que teve aumento de 10.000% de vendagem nos Estados Unidos na época do trumpismo,
Sob os olhos do ocidente tem sido injustamente menosprezado pelo mercado
editorial nesses tempos de extremismo e de guerra contra a Ucrânia. Joseph
Conrad poderá tê-lo concebido a partir da admiração por Dostoievski. São várias
remissões à obra do romancista russo possíveis de serem detectadas ao longo da
narrativa. Primeiramente, estabelece paralelo entre o comportamento (talvez até
na composição do nome do seu personagem) de Raskolnikov e de seu personagem
quanto ao posicionamento perante ao cometimento de seus crimes. Razumov provoca
a morte de Haldin só mesmo para passar por cima de seu cadáver, pois em nenhum
momento se põe como opositor às suas ideias (até o salvaria). Quando o
denuncia, foi movido apenas pelo desejo de afastá-lo de seu caminho. Talvez a
morte do revolucionário nem fosse o seu principal objetivo.
Em Dostoievski, uma das motivações do assassinato cometido
por Raskolnikov, em Crime e castigo, é a experimentação das sensações da
própria prática do ato criminoso. O assassinato tem de ser praticado com a
imposição da força corporal, por isso a escolha do uso do machado. Em Joseph
Conrad, permanece avocação do niilismo, da busca da experiência de aproximar-se
da morte sem exposição presencial para não correr nenhum risco. É o indivíduo
indiferente, para quem “a morte de um homem ou de muitos é uma coisa insignificante”.
O indiferente não expõe o próprio corpo, não tem sensações. Deixa a execução
para outros, por isso basta a denúncia.
Razumov vê Haldin como “um galho seco que precisa ser
cortado”. É bom repisar: o totalitarismo é produzido por homens frios e inescrupulosos.
Essas são características dos precursores dos piores regimes do Século XX. Nem
se ruborizam quando defendem o direito de a população se armar, e de os
governantes usarem snipers para eliminação de comunidades pobres. Não
vai ao campo de batalha. Contrata milicianos para a ocultação de seus crimes. Albert
Camus cria Meursault, para quem a
morte da mãe é indiferente. Ao descobrir-se portador de vasta possibilidade de
ações e comportamentos que lhes abrem a liberdade, os Meursault e os Razumovs se
sentem estrangeiros dentro da própria sociedade em que vive. São os
indiferentes. Os que acolhem qualquer líder com quaisquer propostas, ainda que
comprometedoras das instituições e da harmonia político-social.
Depois ainda existem outras remissões à obra de Dostoievski.
Além da localização da primeira parte da narrativa na Rússia, cria um núcleo de
conspiradores como em Os demônios e, de forma tangencial, ressuscita o padre
Zózima, que é um dos personagens centrais de Os irmãos Karamazov. As três
partes finais se passam em Genebra, mas por outras preferências do autor. Em
que pese ser conservador e reacionário, Joseph Conrad declara a pátria de Rousseau
a terra da plena liberdade. Chega a transitar Razumov ao lado de uma estátua do
pensador e a mencionar o livro O contrato social, certamente tendo em
mente a importância das liberdades individuais para criticar a autocracia. No
entanto, diante do governo autocrático que Conrad põe como pano de fundo,
Genebra chega a ser qualificada de “odiosa cidade da liberdade”,
pois, para o antirrevolucionário e reacionário, a liberdade é odiosa.
Para dar autonomia ao processo narrativo, Conrad cria um avatar
de si mesmo que transita na ação – capaz de questionar os rudimentos da criação
literária e de ir ao ápice do atrevimento de orientar a forma de participação dos
personagens na narrativa – e que preenche as lacunas da trama com o diário do
personagem principal, ao qual teve acesso. Mas a única transcrição literal do
diário só acontece no final do romance, para apresentação da última manifestação
das confissões de Razumov. Razumov é um personagem que transita sem convicção
política, mas desperta confiança pela postura silenciosa que adota em público e
pela capacidade de mudar de assunto para fugir de questionamentos que poderão
implicar na sua culpabilidade. Com esse clima de apatia, a narrativa, em
diversos momentos, se alonga num marasmo vazio, sem despertar aprofundamento. Mesmo
que essa não fosse a principal preocupação de Joseph Conrad, ele demonstra que
os indiferentes à participação política – não só na ação romanesca – acabam
transitando num mutismo dissimulado, dando a impressão de pertencimento a todos
os grupos. Guardam em silêncio para si as crenças que lhe asseguram vantagens,
pois “as palavras são as grandes inimigas da realidade” para esses seres de
moralidade suspeita.
Nem sempre precisamos aguardar que uma obra de ficção
estampe diretamente um regime de exceção para criticar essa forma de governo. A
instalação de extremismos sempre se dá onde transitam os individualistas sem fé
e esperança, detratores da liberdade, pois são eles a força motriz para dar energia de sobrevivência aos
regimes autoritários. São personagens chatos e repugnantes. Postam-se à nossa
frente como inimigos de nosso livre trânsito, de nosso livre arbítrio e de
nossa sobrevivência. São comuns suas aparições com discursos esvaziados de
qualquer convicção ou plausibilidade, inexpressivos, pois em tons guturais,
como se em sibilação, palavras emitidas só com o uso do queixo, sem nenhuma
participação do cérebro para evitar que algum sentimento possa se intrometer e
alterar a ordem do significado.
Joseph Conrad também pode parecer ou ser um avatar de Razumov, pois, nove
anos após a publicação de Sob os olhos do Ocidente, apresenta justificativa
para a acolhida do livro. No entanto, ele ainda não tinha condições de
compreender os desdobramentos criminosos da Revolução Russa e muito menos estavam
à sua disposição os estudos futuros sobre as condições sociais, políticas e
econômicas desencadeadoras de regimes totalitários. O mundo só estava dando o pontapé
inicial para o stalinismo, o nazismo, o fascismo, e tantas outras ditaduras
periféricas, sobretudo da América Latina. Mas não podemos tirar dele certo dom
visionário. Antecipou o questionamento dos personagens vazios, indiferentes,
responsáveis pelo amadurecimento dos espíritos frios, aptos a serem os
gendarmes dos ditadores.
O primeiro a fazer esse questionamento dos indivíduos violentos, o
nascedouro dessa questão, tinha sido Musil, com o seu grupo de demônios juvenis
para infernizar um estudante numa instituição educacional, na pequena e notável
novela O jovem Törless (1906). Os criadores são as antenas visionárias dos
eventos históricos, pois conseguem captar os momentos em que a sociedade se
desconecta da razoabilidade moral e volta-se contra seus próprios interesses,
produzindo correntes às quais o homem se deixa aprisionar. Musil passou grande
parte do Século XX alertando que tudo passou a ser possível quando o homem
perdeu suas qualidades.
Joseph Conrad faz uma declaração importante na nota de 1920 que agregou
ao romance Sob os olhos do Ocidente. Reconhece que o que “mais o
perturbou ao lidar com ele (Razumov) não foi a monstruosidade, mas a sua
banalidade”. A banalidade, ou seja, a falta de consciência, conhecimento e
qualidades éticas, além da dissimulação para fugir da participação de
discussões que possam incriminá-lo ou definir seu caráter antirrevolucionário, fatores
esses que levam os indivíduos a abraçarem as crenças mais tresloucadas e
destrutivas.
Finalmente, na mesma nota acrescentada à abertura do livro, Conrad
enfatiza que à “derrubada de quaisquer instituições deve se seguir uma mudança
fundamental nos corações”. Não que ele pense com essas palavras, mas, passada a
revolução, não há garantia de que não se instalem forças totalitárias, posto
que o ditado diz que “o tigre não pode mudar suas listras, nem o leopardo suas
manchas”. Se tivessem tido oportunidade de acesso aos avanços tecnológicos da
Odontologia, Joseph Conrad ou George Orwell, sobretudo Orwell, ajustaria o
provérbio para identificação das figuras totalitárias que emergiriam no futuro –
não adianta levar o suíno ao dentista e ajustar facetas para branquear seus
dentes, pois ele vai continuar a grunhir como suíno e a comer como um porco.
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