1 de julho de 2024

A chave de ouro de Fernanda Cruz


Eu falaria sobre todas as nuvens, sobre todos os poetas, sobre todos os gravetos, da utilidade e da inutilidade de tudo que podemos enxergar atravessando o raio de sol. Um tronco que não é uma cidade, pois não se submerge nas águas. A palavra que surge de uma outra e nasce um verso em Tennyson e em Fernanda Cruz. Na poeta goiana, o verso "entreaberta noite de céu tão aberto". Em Tennyson, ressoa o verso "Fútil o ganho para o rei nada útil" (It little that in idle king). Sem essas liberações internas, a poesia fica bem fútil, bem irrealizada.

Achei Fernanda Cruz por pura casualidade. Emergiu de uma noite de dezenas de lançamentos. Estava atrás de um balcão com seus livros entre milhares de pessoas. Rimos e nos conhecemos e somos irmã e irmão abraçados, surja a noite iluminada ou a noite do Humanismo. E nossas poesias se entrelaçam gulosas de língua e performance.

Gosto de me ocupar da poesia que não parte de uma exposição específica, que não desbarranca, mas que se ocupa dos esgarçamentos para entrelaçar. Versos que surgem para surpreender quem escreve e quem lê. A ternura que nasce independente da lírica convencional, pois a vida quer se estender como árvores do cerrado. Galhos secos que se infiltram em aramados de caramanchões a recobrir a terra de vida para que nada se torne estéril num socavão.

a sombra da árvore se alarga e se estreita
também meus braços se alargam num segundo
em outros braços que é o instante e se deita

 E uma criança possivelmente virá recobrir a sombra de tinturas. Definir o sujeito para o verbo que ficou agarrado solitariamente no final de um terceto através de uma pequena garra (e). Mas os verbos, em Fernanda Cruz, são enganadores para inversão das metáforas. De repente não são os pés que alcançam o musgo (e os pés/o musgo alcança). Os pés talvez estivessem paralisados e o musgo fosse mais apressado.

Os verdadeiros poetas se realizam pelas grandes inversões que conseguem enxergar, pela visibilidade do interior das palavras e das construções que elas ofertam (subliminar/semblantes). As terminações das palavras são escorregadias, no entanto, as junções internas, quase comuns, mas diversas, são encontradas só com chaves muito pessoais. E Fernanda Cruz tem a chave de ouro na memória para desentranhar as junções das palavras. Nela, por esse desentranhamento, os eventos são outros, já alheios ao cotidiano, à angústia.

Eu gostaria de entrelaçar versos só na memória como é a prática de Fernanda Cruz. Não teria de interromper o fluxo dos espasmos do inconsciente. Seu livro “Irreversível amarelo” (2019) é um exercício zen de abraçar. Pode existir a performance, mas a sua poesia existe em qualquer circunstância, sem nunca abolir sua presença. No entanto, a presença que atua na poesia de Fernanda Cruz não é mais a da autora, mas a de quem lê. Nisso a grandeza da leitura − somos a mistura do que somos com a de quem nos diz o que é ou quem foi. Depois de ler Fernanda Cruz, juntos fertilizamos um eito da vida.

a voz que pousa
            e faz voar
            toda matéria


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