Sempre estive
próximo de Marcos Freitas e de seu trabalho poético. Talvez por isso nunca
senti necessidade de me preocupar com a sua trajetória biográfica ou com os
elementos que entram na construção de sua poesia expressiva e de alcance tão
universal – basta ver a crescente acolhida de sua obra em outras línguas.
Quando me aproximei da coletânea Pedras
encastoadas, despertou-me de um jato a visão do poeta humano e perspicaz
que Marcos Freitas se tornou em cada obra de sua errância por vários
territórios do Planeta. Expressa-se com a voz silenciosa de um guru de terras
orientais, no ritual de um pajé nos ermos de uma floresta, remanescente de uma
comunidade em extinção.
Pela naturalidade
de nosso convívio e pela vivência natural com sua obra, tomo a liberdade para
divagar sobre esse homem e esse poeta. Faço isso para mostrar que não podemos
perder a capacidade de construções de visões de mundos possíveis, de homens
confiáveis e de territórios habitáveis sem medo. A cada dia deixamos de
construir o futuro, pois a perda do devaneio leva ao desprezo pelo outro, à
falta de desejo de estar construindo territórios para viver em comunidade. A
poesia é um dos principais caminhos do devaneio para ver e desejar espaços para
habitar o mundo em companhia. Marcos Freitas vai aos territórios para fazer
intervenções administrativas e poéticas para torná-los habitáveis e
preservados, inclusive na memória.
Engana-se quem
julga que Marcos esteja prestando atenção à conversa. Não lhe preocupa se
atravessa o poema um efeito plástico, mas talvez o cachorro que está do outro
lado das grades. Permanece entretido, talvez aguardando o cachorro choramingar
enquanto se coça. Como em um de seus versos, ouve distraído O blém! blém! do desempeno da chapa metálica.
Enquanto todos falam e troçam, Marcos Freitas devaneia. Devaneia se a porta
espera por ele ou fica ansiosa pela hora certa em que ele entrará em casa? Mas
não seria melhor não ter a obrigação de existir porta, se nascemos para não
colocarmos obstáculos? Puro engano quem o viu num bar. Talvez ele prefira ser
abandonado numa floresta, onde possa devanear sobre o mar e os campos. Graças a
Deus ele nunca se filiou à Ku Klux Klan, negou-se a ser porteiro em Dachau e a
auxiliar na redação da introdução ao AI-5 – peça que consideramos a mais
antipoética que já se escreveu em toda história da Civilização. Muito pelo
contrário, repudia a marcha dos
neonazistas sobre os escombros/da cambaleante pseudodemocracia alemã. Penso
que ele nunca planejou ferrar um cavalo ou escravizar um homem. Prefere
devanear com os provérbios de nossa língua (mostro
os dentes./é assim que se/atesta a qualidade dos cavalos). Dentro da
floresta, enquanto devaneia sobre os mares e os desertos, deve imaginar como
seria ser o pirilampo no escuro ou o que deseja o escravo. O que mais podemos
acrescentar sobre a biografia de Marcos Freitas? Pelo que está dito em sua
poesia, podemos deduzir que ele pertença à Academia dos Poetas Guardiães do
Ventre do Mundo, ao Grupo Permanente dos Caciques da Língua Walapiti e à
Sociedade Protetora dos Peixes do Rio Citarum.
os peixes poluídos do rio Citarum dividem espaços
e oxigênio da
água com as pilhas de garrafas de plásticos.
crianças em
saltos plásticos mergulham no meio dos plásticos.
crianças em
barcos de alumínio catam, para venda,
latas de
alumínios e plásticos
A oportunidade da errância trouxe a Marcos Freitas o estabelecimento de um processo poético refinado, de acuidade rara, que só poetas antigos conseguiram deixar como legado à Humanidade. Ao errar por capitais europeias e fundões brasileiros, em íntima fraternidade com a natureza em razão de seu trabalho, refinou não só o vocabulário, mas a finesse da expressão. Engana-se quem julga que seus poemas possam ser visuais, processo, japoneses ou marginais. É um grande poeta, um criador, pela descoberta dessas experiências de seu tempo para naturalizar em si mesmo uma especial forma de abordagem da natureza, do noticiário, do devaneio do olhar, em peças poéticas exatas, com um carisma pessoal e uma vitória sobre o lirismo e, sobretudo, sobre o chamado para exposição das mazelas das ações humanas em campos políticos tão diversos (desnecessário a definição de todas as áreas que aparecem em seus poemas, tais como a natureza, o território e as comunidades, pois tudo que alcança sucesso ou fracasso advém da ação política do homem).
Neste Pedras
encastoadas, que agrupa poemas inéditos do período da pandemia do Covid-19
junto com um grupo de outros aparecidos em livros anteriores, cristaliza-se a
experiência de Marcos Freitas em valorizar o mistério que se esconde debaixo
das palavras. O que está escrito não é o que se diz. A poesia não é a palavra
em si, mas algo que encobre, que fica para ser desnudado. Está no livro a sua
defesa da poesia no poema “estado democrático de poesia”; aparece no poema
“puro jazz maduro jazo” a paixão que temos pelo jazz, num tom tão precioso
quanto no texto de Cortázar para Clifford Brown; o necrológio do índio Amoim
Aruká, entre tantos outros poemas que nascem clássicos e irão se incorporar
naturalmente ao nosso florilégio canônico.
Merece entrada especial o poema “Lavoura de galáxias”,
constituído de doze raios rotativos em torno da mãe, eternizando microcosmos da
infância. Por mais que poeta diga que “se fez rouco” com aquela morte, é dele o
grito e os espectros, em “sutis sons de galáxias”, das lembranças. Quase
inconcebível que as lembranças se façam com “microvilosidades de sonhos” vindas
de “Diafragmáticas rotas de ar”. A raridade das palavras não ocorre para
suntuosidade, ufanismo poético, mas pela dificuldade do sopro do ar, sua falta,
para registrar a ausência da mãe. Na ausência não há respiração. São doze raios
com pouco espaço para respiração, e o uso de versos milimétricos, pois a
ausência não ocupa espaço. Resta o quarto vazio, sem “aonde/arrumar teus
chinelos”. A poesia, em Marcos Freitas, não é só a oportunidade de tocar na
Paideia do seu tempo, mas também de validação da memória.
Sem perda da fluência com o uso de palavras raras, dos
versos aforísticos de crítica social e de abordagem do microcosmos das
florestas e da cultura dos povos primitivos, a poesia de Marcos Freitas quase
se insere na poesia de invenção. No entanto, não o preocupa o sincretismo, mas
o acréscimo de uma tonalidade crítica, que passa a jazer sobre as margens das
palavras. Preferível ajustá-lo à linhagem dos hierarcas universais, poetas dos
momentos trágicos. Seria Píndaro, seria Horácio, se não fosse Marcos Freitas, o
que habita entre nós. Cada época histórica precisa do seu poeta de ávida lírica
trágica para tocar no processo de estabelecimento da ética do homem do seu
tempo. O poema “direito à vida”:
hoje li sobre cidadania
e o que isso
seria?
cidadania hoje
é manter-se vivo
em plena via
cidadania hoje
é manter-se vivo
em plena pandemia
Acariquanas berós
jurus
Juruá
carapanaúbas madeira
Coataquiáuas
xingu cumarus
Paricás mungubas
morototós
quarubas tauarís
árvores-rios
Seja em
apresentações de seus livros, em páginas virtuais e da imprensa, vários
intelectuais destacam o mérito crescente da poesia desse poeta, tais como
Antonio Miranda, Anderson Braga Horta, Jorge Amâncio, Kori Bolívia, Rogério
Salgado, André Giusti, José Roberto da Silva, Edmar Oliveira, Alicia Silvestre
e Batista de Lima. Para finalizar essa peroração, assumo as palavras da
autoridade de Marcos Fabrício Lopes da Silva, para quem Marcos Freitas vem
construindo uma “obra fascinante que desperta o impensado, adormecido no sono
dogmático; é pensar no impensado, o que mais se dá a pensar”.
Pensemos e
flertemos, intensamente, com a poesia de Marcos Freitas!
Brasília, agosto
de 2023.
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