A poesia é meu território, e a cada dia planto e colho grãos em seus campos. Com a poesia, eu fundo e confundo a realidade. (Linoliogravura do fundo: Beto Nascimento)
10 de dezembro de 2024
Atividades 2024
3 de dezembro de 2024
As duas portas
(Jogral para pensar e não para divertir)
Permitida a utilização em reuniões sem fins lucrativos, tais como escolares e familiares. A cenografia fica a critério de quem foi preparar a apresentação. Podem ser utilizados dois apresentadores para texto principal e outros para os poemas. Ou intercalar recortes das duas partes para demonstrar a necessidade de diálogo para criação de alteridade na sociedade. Para fins comerciais, a utilização exige autorização do autor em conformidade com a legislação vigente..Jogral para sala de aula, peça teatral infantil, juvenil, crítica, alteridade. Trata da polaridade da vida: bem/mal, sabedoria/ódio, prisão/liberdade.)
Autor: Salomão Sousa
Primeiro Leitor (a leitura deve ser raivosa)
A porta fechada
É para ficar fechado.
É para ficar escuro.
O dia anoitece. E é para ficar sem lua.
Tenho o balde para depositar as minhas fezes.
Tenho a minha raiva
e não quero pegar na mão!
Tenho a parede para coçar as costas!
Vou acreditar naquilo que não vejo,
naquilo que não ouço, naquilo que não vi.
O meu fantasma é a minha cara!
É para ficar quebrado.
Não traga espelho!
Não me interessa se há caminho!
Distribuo buracos, tocos e espinhos.
Se ando, só encontro jumentos,
só encontro feras de olhos e dentes horrendos!
Não ando, não danço.
Não me interessa que dês as horas!
Eu mando no relógio, não será agora.
É para ficar fechado! Eu parto, eu quebro.
É pra ficar calado, só eu falo!
Ninguém sobe, ninguém desce,
ordeno e a encosta soterra!
Eu recuso! Não deixo que entres,
que transportes o teu produto, o teu lucro!
Não graves, não filmes.
Não pisques. É pra ficar em sigilo.
Da janela, jogo o lixo;
em meu quarto preparo o flagelo. Eu excreto.
Apaga a mensagem, queima os livros!
Só eu digo o que alguém pode saber!
Se eu não sei, eu minto.
Posso criar mentiras trancado em meu quarto!
A minha mentira será tua verdade.
Em meu caminho ninguém passa,
em meu rio ninguém nada.
A minha verdade ninguém sabe.
Não deixo que ninguém atravesse,
que ninguém saiba
Eu amasso. Eu invento.
Inventei a ampulheta e a acupuntura
com a acurada técnica de usar agulhas.
Está proibido outro inventar
e quem inventar eu costuro.
Eu jogo do penhasco, eu jogo da ponte.
Arremesso no muro. Invento.
Inventei a postura
de andar a cavalo
empunhando a espada.
Chicoteio quem se atreve, quem pensa ou ama.
É para a porta ficar fechada.
Quem sabe, eu expulso.
Quem vê, eu dependuro.
Quem pensa, eu dispenso.
Eu mando, eu quero é o escuro.
Eu não penso, eu não falo,
eu urro, eu empurro.
Só eu posso ver as asas.
Só eu posso contemplar o céu.
Me dá a janela. Ela é minha.
O quadrado é meu, o redondo, o funil.
É meu o branco e todo o anil. É meu.
Eu compro. Eu tomo.
Passa por debaixo da porta. É meu.
Joga por cima. É meu.
Me dá. É meu o Canadá.
A porta é para ficar fechada.
É meu o golfo. Pode tremer!
Ninguém pode passar o seu navio.
Ninguém pode tremular a sua bandeira.
Eu engano, eu esmurro.
Esfolo o Bento, o Zé, a Renata, o Zeferino,
o que trabalha na draga, na droga,
enchendo o balão, a bexiga.
Eu prendo, eu arrebento.
Esfolo, não rias.
Droga! Não falei drogaria, não rias.
Aproveita e fica mudo. Se falar, eu costuro.
Crio mentiras com anéis, faixas em Gaza,
bombas, engano com papeis e cola e tubos.
Eu não estudo, eu estrondo.
Estrondo tudo, com tubo, com cola,
pontadas, com pedras.
Eu jogo no rio, eu jogo do penhasco.
Aqui não precisamos de ordem,
não negociamos, não tragam tratado de paz.
Não concedo salvo-conduto.
Não imaginamos.
Interessa-nos o cofre, o bônus.
Tira daqui a metáfora e põe o furadeira.
Estrondo tudo, com máquina pontuda,
com lâmina afiada
e, em sua falta, enfio a lâmina rombuda.
Não negocio. É meu
Apago. Fecho. É meu.
Escondo. É meu.
Estrondo.
Coro (cada membro do coro fica com um verso e todos repetem a sua parte ao mesmo tempo para gerar um tom de balbúrdia)
Trens trans trins truns trens trans trins truns
Fora daqui
trens trans trins truns
Fora daqui fora daqui
Trens trans trins truns
fora daqui fora daqui fora daqui
até sumir
Anexos da primeira parte:
Poema de Alcenor Candeira Filho
DIANTE DA PORTA DA VIDA MORTA
Diante da porta
da vida morta,
devo sorrir
ou devo chorar?
Há deste lado
belas estrelas
que um dia talvez
possa alcançar.
Belas estrelas,
mas que me assombram
e fazem mal
ao meu olhar.
Por trás da porta
da vida morta,
em meio a um branco
transcendental,
o que haverá?
o que haverá?
Belas estrelas
dos meus assombros,
por gentileza
dizei-me vós:
diante da porta
da vida morta
devo sorrir
ou devo chorar?
SALDO, de José Paulo Paes
a torneira seca
(mas pior: a falta
de sede)
a luz apaga
(mas pior: o gosto
do escuro)
a porta fechada
(mas pior: a chave
por dentro)
Leitor 3 (leitura sem dramaticidade, convidativa, harmoniosa)
A porta aberta
É para ficar aberto.
A noite amanhece. O vento no
rosto.
O que fica aberto nos deixa
livres,
nos alenta com vento, com uva.
O horizonte nos chamando pro
mundo.
Há penhascos altos e poços
fundos!
A minha cabeça aberta!
Aberta para enfrentar os
fantasmas.
A minha cabeça aberta para
desvendar
e compreender os mistérios.
Os gozosos e os desastrosos!
O concerto em conchas abertas!
Valquírias em cavalos alados.
Trens truns transportando
atravessando estralando nos
trilhos!
Os amigos por perto, sem correr
risco,
sem buchas no ouvido!
Sem costuras nos lábios,
os amigos não dizem mentiras.
De olhos abertos não erramos de
caminho.
Se abro a porta
revigoram-me essas florezinhas
preguiçosas.
Rastros de cavalos
que não foram levados à guerra,
alianças perdidas por amantes
felizes
É para ficar livre.
Cuidado com o Scooby que a
porta está aberta!
Parto para o mar onde me
aguardam os navios,
encontro as montanhas com neve
e posso passar frio, calçar
minhas botas,
tomar chá quente com
desconhecidos
que acendem a fogueira.
É para ficar aberto.
Eu durmo à noite com a porta
muito aberta!
Se a porta está aberta
as pessoas não abandonam a
casa.
Desenhe o zimbro e a árvore não
morre!
Desenhe o zimbro cheio de
sinos!
A noite amanhece cheia de
deuses.
Um homem faz uma prece,
outro canta uma litania
outro simplesmente esvazia um
cântaro,
estende a tolha desenhada com
seus ícones,
outro que dedilha uma corda,
oferece uma fatia na curva em tigela
bruta.
Alimenta as formigas com bolo
de festa!
Acenda uma vela.
São os meus deuses gregos em
luta.
O sol não se extenua.
A estrela desaparece e
descansa.
Não tenhamos medo.
Não instale taramela. Sem trava
a cancela.
É pra ficar aberto!
Não estou só quando estou com o
neto Felipe,
com a bis Lis, com o primo
Davi, com a tia Su,
com a tia Lulu, com a tia Lili,
com a tia Lalá.
Com a madrinha Dalva assando
biscoitos,
recebendo uma graça!
E, por atrapalhação das letras,
vivo feliz com a tia Valda!
Quero ficar um pouco mais sem
casa.
Às vezes quem diz é a Eloá.
Quem sempre repete é a Bizé.
Quem sempre alerta é a Bizu.
Quem embarca é o Noé.
Traz a tua resposta, a tua
pergunta!
Tira daqui o urubu. Aqui nada
apodrece.
Não vás confundir! Não vás
enfezar!
Viajaremos sorrindo sobre as
asas e o céu.
Costura a tua camisa e veste!
Não construo muro, não tenho
cercas elétricas cheia de pregos e tridentes.
Quando ando em calçadas
desimpedidas,
pego na mão, abraço e construo!
Converso!
Há cozinheiras na esquina.
Há fumaça. Cheiro de manteiga e
de alho frito.
Não tenho medo de mudar o que
penso,
de ensinar o que aprendo.
Não sou besta de ficar aflito.
Sigo, espero e converso!
Gosto de ver, de perguntar,
de atravessar a rua!
Se tiver rato morto, eu me
desvio.
Se eu pisar na lama, eu me
lavo!
Se me perco na floresta, não me
desespero.
É só seguir em frente.
Atravesso. Depois ajusto o
rumo.
Há alegria quando estou só,
se a porta está aberta!
Há alegria quando atravesso.
A cidade, o beco, a travessa.
Quando saio por uma porta
aberta
eu sou o que os outros veem de
mim.
Não me enlouqueço quando não
sei
o que acham, o que julgam.
Com os que colhem urtigas.
Não me enlouqueço se não
alimento intrigas.
Não venham com larvas,
com piolhos para os meus olhos.
Não imponham tristeza,
não venham com raiva.
Estou fora.
Não há amor na solidão,
quando estou trancado com a
minha raiva!
Não tenhas medo se vês um
espinho!
Não tenhas medo se uma serpente
atravessa na tua frente!
Enfrenta! Aguarda! Experimenta
o verde!
Há listras amarelas e
vermelhas!
Manda uma mensagem
alvissareira,
lê um bom livro!
Propõe um projeto. Executa.
Colhe o teu dia com Horácio,
com a Sofia.
Carpe diem!
Abre a porta da frente, dos
lados e dos fundos!
Como é bela a transparência!
Como é belo o ondear de uma
cobra!
Sem pernas e sem maldades a
cobra caminha!
Aguarda, espera, olha, luta.
Oh! Não chuta!
Não falamos com os pés
ou com espada ou agulhas!
Pés e balas não sabem
gramática.
Dá uma volta, vira-te.
Abra a porta e a janela. Dá um
salto, caminha.
Sigamos nas mesmas asas,
nos mesmos balões,
atravessemos juntos os golfos,
dentro do céu!
Vamos fazer um pic-nic na
Groelândia!
Coro (as vozes devem fazer um som de voo no espaço):
Ai a sineta amiga
VUUN VOOOOO AVIÃO VAMOS VAMOS VOOOOO
Anexos da segunda parte:
POEMA DE CANÇÃO SOBRE A ESPERANÇA,
de Fernando Pessoa
Dá-me lírios, lírios,
e rosas também.
Mas se não tens lírios
nem rosas a dar-me,
tem vontade ao menos
de me dar os lírios
e também as rosas.
Basta-me a vontade
que tens, se a tiveres,
de me dar os lírios
e as rosas também,
E terei os lírios —
Os melhores lírios —
E as melhores rosas
sem receber nada.
A não ser a prenda
da tua vontade
De me dares lírios
e rosas também.
Poema de Rabindranath Tagore
Senhor! Dá-me a esperança, tira de mim a tristeza
e não passa a tristeza para ninguém.
Senhor! Planta em meu coração a sementeira do amor
e arranca de minha alma as rugas do ódio.
Ajuda-me a transformar meus rivais em companheiros,
meus companheiros em entes queridos.
Dá-me a razão para me livrar de minhas ilusões.
Deus! Conceda-me a força para dominar meus desejos.
Fortifica meu olhar para que veja os defeitos de minha alma
e venda meus olhos para que eu não cometa os defeitos alheios.
Dá-me o sabor de saber perdoar e afasta de mim os desejos de vingança.
Ajuda-me a fazer feliz o maior número de possível de seres humanos,
para ampliar seus dias risonhos e diminuir suas noites tristonhas.
Não me deixe ser um cordeiro perante os fortes
e nem um leão diante dos fracos.
Imprime em meu coração a tolerância
e o perdão e afasta de minha alma o orgulho e a presunção.
Deus! Encha meu coração com a divina fé...
Faz-me uma pessoa realmente justa.
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