3 de dezembro de 2024

As duas portas

(Jogral para pensar e não para divertir)

Permitida a utilização em reuniões sem fins lucrativos, tais como escolares e familiares. A cenografia fica a critério de quem foi preparar a apresentação. Podem ser utilizados dois apresentadores para  texto principal e outros para os poemas. Ou intercalar recortes das duas partes para demonstrar a necessidade de diálogo para criação de alteridade na sociedade. Para fins comerciais, a utilização exige autorização do autor em conformidade com a legislação vigente..Jogral para sala de aula, peça teatral infantil, juvenil, crítica, alteridade. Trata da polaridade da vida: bem/mal, sabedoria/ódio, prisão/liberdade.)


Autor: Salomão Sousa


Primeiro Leitor (a leitura deve ser raivosa)

A porta fechada


É para ficar fechado.

É para ficar escuro.

O dia anoitece. E é para ficar sem lua.

Tenho o balde para depositar as minhas fezes.

Tenho a minha raiva

e não quero pegar na mão!

Tenho a parede para coçar as costas!

Vou acreditar naquilo que não vejo,

naquilo que não ouço, naquilo que não vi.

O meu fantasma é a minha cara!

É para ficar quebrado.

Não traga espelho!

Não me interessa se há caminho!

Distribuo buracos, tocos e espinhos.

Se ando, só encontro jumentos,

só encontro feras de olhos e dentes horrendos!

Não ando, não danço.

Não me interessa que dês as horas!

Eu mando no relógio, não será agora.

É para ficar fechado! Eu parto, eu quebro.

É pra ficar calado, só eu falo!

Ninguém sobe, ninguém desce,

ordeno e a encosta soterra!

Eu recuso! Não deixo que entres,

que transportes o teu produto, o teu lucro!

Não graves, não filmes.

Não pisques. É pra ficar em sigilo.

Da janela, jogo o lixo;

em meu quarto preparo o flagelo. Eu excreto.

Apaga a mensagem, queima os livros!

Só eu digo o que alguém pode saber!

Se eu não sei, eu minto.

Posso criar mentiras trancado em meu quarto!

A minha mentira será tua verdade.

Em meu caminho ninguém passa,

em meu rio ninguém nada.

A minha verdade ninguém sabe.

Não deixo que ninguém atravesse,

que ninguém saiba

Eu amasso. Eu invento.

Inventei a ampulheta e a acupuntura

com a acurada técnica de usar agulhas.

Está proibido outro inventar

e quem inventar eu costuro.

Eu jogo do penhasco, eu jogo da ponte.

Arremesso no muro. Invento.

Inventei a postura

de andar a cavalo

empunhando a espada.

Chicoteio quem se atreve, quem pensa ou ama.

É para a porta ficar fechada.

Quem sabe, eu expulso.

Quem vê, eu dependuro.

Quem pensa, eu dispenso.

Eu mando, eu quero é o escuro.

Eu não penso, eu não falo,

eu urro, eu empurro.

Só eu posso ver as asas.

Só eu posso contemplar o céu.

Me dá a janela. Ela é minha.

O quadrado é meu, o redondo, o funil.

É meu o branco e todo o anil. É meu.

Eu compro. Eu tomo.

Passa por debaixo da porta. É meu.

Joga por cima. É meu.

Me dá. É meu o Canadá.

A porta é para ficar fechada.

É meu o golfo. Pode tremer!

Ninguém pode passar o seu navio.

Ninguém pode tremular a sua bandeira.

Eu engano, eu esmurro.

Esfolo o Bento, o Zé, a Renata, o Zeferino,

o que trabalha na draga, na droga,

enchendo o balão, a bexiga.

Eu prendo, eu arrebento.

Esfolo, não rias.

Droga! Não falei drogaria, não rias.

Aproveita e fica mudo. Se falar, eu costuro.

Crio mentiras com anéis, faixas em Gaza,

bombas, engano com papeis e cola e tubos.

Eu não estudo, eu estrondo.

Estrondo tudo, com tubo, com cola,

pontadas, com pedras.

Eu jogo no rio, eu jogo do penhasco.

Aqui não precisamos de ordem,

não negociamos, não tragam tratado de paz.

Não concedo salvo-conduto.

Não imaginamos.

Interessa-nos o cofre, o bônus.

Tira daqui a metáfora e põe o furadeira.

Estrondo tudo, com máquina pontuda,

com lâmina afiada

e, em sua falta, enfio a lâmina rombuda.

Não negocio. É meu

Apago. Fecho. É meu.

Escondo. É meu.

Estrondo.  

 

Coro (cada membro do coro fica com um verso e todos repetem a sua parte ao mesmo tempo para  gerar um tom de balbúrdia)


Trens trans trins truns trens trans trins truns

Fora daqui

trens trans trins truns

Fora daqui fora daqui 

Trens trans trins truns 

fora daqui fora daqui fora daqui 

até sumir





Anexos da primeira parte:
Poema de Alcenor Candeira Filho

DIANTE DA PORTA DA VIDA MORTA

Diante da porta
da vida morta,
devo sorrir
ou devo chorar?

Há deste lado
belas estrelas
que um dia talvez
possa alcançar.

Belas estrelas,
mas que me assombram
e fazem mal
ao meu olhar.

Por trás da porta
da vida morta,
em meio a um branco
transcendental,

o que haverá?
o que haverá?

Belas estrelas
dos meus assombros,
por gentileza
dizei-me vós:

diante da porta
da vida morta
devo sorrir
ou devo chorar?


SALDO, de José Paulo Paes


a torneira seca
(mas pior: a falta
de sede)

a luz apaga
(mas pior: o gosto
do escuro)

a porta fechada
(mas pior: a chave
por dentro)

Leitor 3 (leitura sem dramaticidade, convidativa, harmoniosa)


A porta aberta

 

É para ficar aberto.

A noite amanhece. O vento no rosto.

O que fica aberto nos deixa livres,

nos alenta com vento, com uva.

O horizonte nos chamando pro mundo.

Há penhascos altos e poços fundos!

A minha cabeça aberta!

Aberta para enfrentar os fantasmas.

A minha cabeça aberta para desvendar

e compreender os mistérios.

Os gozosos e os desastrosos!

O concerto em conchas abertas!

Valquírias em cavalos alados.

Trens truns transportando

atravessando estralando nos trilhos!

Os amigos por perto, sem correr risco,

sem buchas no ouvido!

Sem costuras nos lábios,

os amigos não dizem mentiras.

De olhos abertos não erramos de caminho.

Se abro a porta

revigoram-me essas florezinhas preguiçosas.

Rastros de cavalos

que não foram levados à guerra,

alianças perdidas por amantes felizes

É para ficar livre.

Cuidado com o Scooby que a porta está aberta!

Parto para o mar onde me aguardam os navios,

encontro as montanhas com neve

e posso passar frio, calçar minhas botas,

tomar chá quente com desconhecidos

que acendem a fogueira.

É para ficar aberto.

Eu durmo à noite com a porta muito aberta!

Se a porta está aberta

as pessoas não abandonam a casa.

Desenhe o zimbro e a árvore não morre!

Desenhe o zimbro cheio de sinos!

A noite amanhece cheia de deuses.

Um homem faz uma prece,

outro canta uma litania

outro simplesmente esvazia um cântaro,

estende a tolha desenhada com seus ícones,

outro que dedilha uma corda,

oferece uma fatia na curva em tigela bruta.

Alimenta as formigas com bolo de festa!

Acenda uma vela.

São os meus deuses gregos em luta.

O sol não se extenua.

A estrela desaparece e descansa.

Não tenhamos medo.

Não instale taramela. Sem trava a cancela.

É pra ficar aberto!

Não estou só quando estou com o neto Felipe,

com a bis Lis, com o primo Davi, com a tia Su,

com a tia Lulu, com a tia Lili, com a tia Lalá.

Com a madrinha Dalva assando biscoitos,

recebendo uma graça!

E, por atrapalhação das letras,

vivo feliz com a tia Valda!

Quero ficar um pouco mais sem casa.

Às vezes quem diz é a Eloá.

Quem sempre repete é a Bizé.

Quem sempre alerta é a Bizu.

Quem embarca é o Noé.

Traz a tua resposta, a tua pergunta!

Tira daqui o urubu. Aqui nada apodrece.

Não vás confundir! Não vás enfezar!

Viajaremos sorrindo sobre as asas e o céu.

Costura a tua camisa e veste!

Não construo muro, não tenho cercas elétricas cheia de pregos e tridentes.

Quando ando em calçadas desimpedidas,

pego na mão, abraço e construo! Converso!

Há cozinheiras na esquina.

Há fumaça. Cheiro de manteiga e de alho frito.

Não tenho medo de mudar o que penso,

de ensinar o que aprendo.

Não sou besta de ficar aflito.

Sigo, espero e converso!

Gosto de ver, de perguntar,

de atravessar a rua!

Se tiver rato morto, eu me desvio.

Se eu pisar na lama, eu me lavo!

Se me perco na floresta, não me desespero.

É só seguir em frente.

Atravesso. Depois ajusto o rumo.

Há alegria quando estou só,

se a porta está aberta!

Há alegria quando atravesso.

A cidade, o beco, a travessa.

Quando saio por uma porta aberta

eu sou o que os outros veem de mim.

Não me enlouqueço quando não sei

o que acham, o que julgam.

Com os que colhem urtigas.

Não me enlouqueço se não alimento intrigas.

Não venham com larvas,

com piolhos para os meus olhos.

Não imponham tristeza,

não venham com raiva.

Estou fora.

Não há amor na solidão,

quando estou trancado com a minha raiva!

Não tenhas medo se vês um espinho!

Não tenhas medo se uma serpente

atravessa na tua frente!

Enfrenta! Aguarda! Experimenta o verde!

Há listras amarelas e vermelhas!

Manda uma mensagem alvissareira,

lê um bom livro!

Propõe um projeto. Executa.

Colhe o teu dia com Horácio, com a Sofia.

Carpe diem!

Abre a porta da frente, dos lados e dos fundos!

Como é bela a transparência!

Como é belo o ondear de uma cobra!

Sem pernas e sem maldades a cobra caminha!

Aguarda, espera, olha, luta. Oh! Não chuta!

Não falamos com os pés

ou com espada ou agulhas!

Pés e balas não sabem gramática.

Dá uma volta, vira-te.

Abra a porta e a janela. Dá um salto, caminha.

Sigamos nas mesmas asas,

nos mesmos balões,

atravessemos juntos os golfos,

dentro do céu!

Vamos fazer um pic-nic na Groelândia!


Coro (as vozes devem fazer um som de voo no espaço):


Ai a sineta amiga 

VUUN VOOOOO AVIÃO VAMOS VAMOS VOOOOO


Anexos da segunda parte:

POEMA DE CANÇÃO SOBRE A ESPERANÇA, 

de Fernando Pessoa

Dá-me lírios, lírios,
e rosas também.
Mas se não tens lírios
nem rosas a dar-me,
tem vontade ao menos
de me dar os lírios
e também as rosas.
Basta-me a vontade
que tens, se a tiveres,
de me dar os lírios
e as rosas também,
E terei os lírios —
Os melhores lírios —
E as melhores rosas
sem receber nada.
A não ser a prenda
da tua vontade
De me dares lírios
e rosas também.


Poema de Rabindranath Tagore

Senhor! Dá-me a esperança, tira de mim a tristeza
e não passa a tristeza para ninguém.
Senhor! Planta em meu coração a sementeira do amor
e arranca de minha alma as rugas do ódio.
Ajuda-me a transformar meus rivais em companheiros,
meus companheiros em entes queridos.
Dá-me a razão para me livrar de minhas ilusões.
Deus! Conceda-me a força para dominar meus desejos.
Fortifica meu olhar para que veja os defeitos de minha alma
e venda meus olhos para que eu não cometa os defeitos alheios.
Dá-me o sabor de saber perdoar e afasta de mim os desejos de vingança.
Ajuda-me a fazer feliz o maior número de possível de seres humanos,
para ampliar seus dias risonhos e diminuir suas noites tristonhas.
Não me deixe ser um cordeiro perante os fortes
e nem um leão diante dos fracos.
Imprime em meu coração a tolerância
e o perdão e afasta de minha alma o orgulho e a presunção.
Deus! Encha meu coração com a divina fé...
Faz-me uma pessoa realmente justa.

2 comentários:

  1. Adorei conhecer as poesias que dão forma a um belíssimo jogral.Vou fazer uso dele com a minha família em Belém. Muito obrigada! E um Feliz Natal e um Próspero Ano de Felicidade!

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    1. Obrigado por escolher o jogral. Me mande fotos para eu postar aqui. Fiz alguns ajustes no texto. bom Natal! salomaosousa@yahoo.com.br

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Salomão Sousa sente-se honrado com a visita e o comentário

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A expressão "à beça" me persegue a mais de trinta anos. Antes de falecer, o Pe. Joaquim Gomes da Silva, meu professor de Português...