24 de dezembro de 2008

Sempre vou me atrasando para alguns compromissos, às vezes empurrado pelo simples enfado. Até agora não desejei boas festas a nenhum amigo. Não é por desleixo ou desamizade — é um tédio de querer ficar em suspenso, sem a necessidade de ser heróico, ético ou cataplético. Ficar borboleteando sobre a flor e a lama, e continuar humanamente borboleta, amigo da lama e da flor.
Apanhei ao acaso o romance “A hora da estrela”, e Clarice Lipector que, ao escrever esse livro, é ela mesma ou outro personagem masculino que constrói, num gesto quase filosófico ou de manifestação santa, o ápice de beleza a partir de uma vida simples.
E há uma frase nesse livro que vai servir para eu saudar os meus amigos neste fim de ano: “tudo que amadurece pode apodrecer”.
Portanto, não vamos nos preocupar em ser perfeitos ou em nos realizar completamente. Mas vamos imitar Julien Sorel, do romance “O vermelho e o negro”, de Stendhal, que está preocupado em ser feliz. Talvez tenha vindo deste romance a expressão: “estou morto de felicidade”.
Vamos simplesmente ser felizes, dentro do tédio, do torpor, dentro da gala se a gala a nós se apresentar.
E, para completar a felicidade, ler pela obrigação da felicidade, pois há felicidade no instante em que o conhecimento nos fricciona — ler um destes três livros:
1) A hora da estrela, de Clarice Lispector. Meu deus — são menos de cem paginazinhas, de total aventura da beleza e do pensamento.
2) O velho e o mar. Hemingway construiu a sua fábula num momento de total desespero, de falta de outro imaginário, quando teve uma recaída de produção. Sempre as quedas permitem essas fatais fábulas da obviedade que nuca vemos. O velho Salvador nos mostra que a felicidade é cumprir a tarefa. Toda vez que leio as menos de cem páginas deste grande livro, meu coração se contrai.
3) Moby Dick. Meu velho Melville, só mesmo você existindo para existir Camus, Nietszche, a filosofia do absurdo. Temos de ter um adversário, uma baleia branca com que lutar para que o tédio não nos destrua o fígado.
E assim já matei o tédio da insônia, com este texto baleia-branca, para saudar os meus amigos. Não nos entediemos, em 2009, a ponto de xingar o garçom, o motorista, o irmão. Xinguemos, antes, nós mesmos, por não compreendermos o tédio, o rancor. Deixemos o outro fazer o seu trabalho, a ter a sua aventura, a sua traição. Sejamos humanos, incompletos e compreendamos que o outro também é incompleto, que o outro está em seu lento e errático amadurecer. Compreendamos que o eu e o outro ainda não se entrelaçam em definitiva completude. Compreendamos que a incompletude faz a felicidade, pois torna possível a interminável aventura de combater a escassez de lugares no mundo. Quem se achar completo, o bom, o bam-bam-bam — está pronto para a morte. Eu, mesmo, quero morrer o mais tarde possível, deixando alguma vacuidade de incompletude para que outro possa vir preencher com o seu pouco, com a sua escassez de completude.
Não amadureçamos tão rápido para não apodrecermos. Aproveitemos um pouco mais de sol, em 2009, como Salvador e Ahab.

@ Salomão Sousa

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