28 de novembro de 2023

Devaneios do poeta viajante



Sempre estive próximo de Marcos Freitas e de seu trabalho poético. Talvez por isso nunca senti necessidade de me preocupar com a sua trajetória biográfica ou com os elementos que entram na construção de sua poesia expressiva e de alcance tão universal – basta ver a crescente acolhida de sua obra em outras línguas. Quando me aproximei da coletânea
Pedras encastoadas, despertou-me de um jato a visão do poeta humano e perspicaz que Marcos Freitas se tornou em cada obra de sua errância por vários territórios do Planeta. Expressa-se com a voz silenciosa de um guru de terras orientais, no ritual de um pajé nos ermos de uma floresta, remanescente de uma comunidade em extinção.

Pela naturalidade de nosso convívio e pela vivência natural com sua obra, tomo a liberdade para divagar sobre esse homem e esse poeta. Faço isso para mostrar que não podemos perder a capacidade de construções de visões de mundos possíveis, de homens confiáveis e de territórios habitáveis sem medo. A cada dia deixamos de construir o futuro, pois a perda do devaneio leva ao desprezo pelo outro, à falta de desejo de estar construindo territórios para viver em comunidade. A poesia é um dos principais caminhos do devaneio para ver e desejar espaços para habitar o mundo em companhia. Marcos Freitas vai aos territórios para fazer intervenções administrativas e poéticas para torná-los habitáveis e preservados, inclusive na memória.

Engana-se quem julga que Marcos esteja prestando atenção à conversa. Não lhe preocupa se atravessa o poema um efeito plástico, mas talvez o cachorro que está do outro lado das grades. Permanece entretido, talvez aguardando o cachorro choramingar enquanto se coça. Como em um de seus versos, ouve distraído O blém! blém! do desempeno da chapa metálica. Enquanto todos falam e troçam, Marcos Freitas devaneia. Devaneia se a porta espera por ele ou fica ansiosa pela hora certa em que ele entrará em casa? Mas não seria melhor não ter a obrigação de existir porta, se nascemos para não colocarmos obstáculos? Puro engano quem o viu num bar. Talvez ele prefira ser abandonado numa floresta, onde possa devanear sobre o mar e os campos. Graças a Deus ele nunca se filiou à Ku Klux Klan, negou-se a ser porteiro em Dachau e a auxiliar na redação da introdução ao AI-5 – peça que consideramos a mais antipoética que já se escreveu em toda história da Civilização. Muito pelo contrário, repudia a marcha dos neonazistas sobre os escombros/da cambaleante pseudodemocracia alemã. Penso que ele nunca planejou ferrar um cavalo ou escravizar um homem. Prefere devanear com os provérbios de nossa língua (mostro os dentes./é assim que se/atesta a qualidade dos cavalos). Dentro da floresta, enquanto devaneia sobre os mares e os desertos, deve imaginar como seria ser o pirilampo no escuro ou o que deseja o escravo. O que mais podemos acrescentar sobre a biografia de Marcos Freitas? Pelo que está dito em sua poesia, podemos deduzir que ele pertença à Academia dos Poetas Guardiães do Ventre do Mundo, ao Grupo Permanente dos Caciques da Língua Walapiti e à Sociedade Protetora dos Peixes do Rio Citarum.

 os peixes poluídos do rio Citarum dividem espaços

e oxigênio da água com as pilhas de garrafas de plásticos.

crianças em saltos plásticos mergulham no meio dos plásticos.

crianças em barcos de alumínio catam, para venda,

latas de alumínios e plásticos

 A oportunidade da errância trouxe a Marcos Freitas o estabelecimento de um processo poético refinado, de acuidade rara, que só poetas antigos conseguiram deixar como legado à Humanidade. Ao errar por capitais europeias e fundões brasileiros, em íntima fraternidade com a natureza em razão de seu trabalho, refinou não só o vocabulário, mas a finesse da expressão. Engana-se quem julga que seus poemas possam ser visuais, processo, japoneses ou marginais. É um grande poeta, um criador, pela descoberta dessas experiências de seu tempo para naturalizar em si mesmo uma especial forma de abordagem da natureza, do noticiário, do devaneio do olhar, em peças poéticas exatas, com um carisma pessoal e uma vitória sobre o lirismo e, sobretudo, sobre o chamado para exposição das mazelas das ações humanas em campos políticos tão diversos (desnecessário a definição de todas as áreas que aparecem em seus poemas, tais como a natureza, o território e as comunidades, pois tudo que alcança sucesso ou fracasso advém da ação política do homem).

Neste Pedras encastoadas, que agrupa poemas inéditos do período da pandemia do Covid-19 junto com um grupo de outros aparecidos em livros anteriores, cristaliza-se a experiência de Marcos Freitas em valorizar o mistério que se esconde debaixo das palavras. O que está escrito não é o que se diz. A poesia não é a palavra em si, mas algo que encobre, que fica para ser desnudado. Está no livro a sua defesa da poesia no poema “estado democrático de poesia”; aparece no poema “puro jazz maduro jazo” a paixão que temos pelo jazz, num tom tão precioso quanto no texto de Cortázar para Clifford Brown; o necrológio do índio Amoim Aruká, entre tantos outros poemas que nascem clássicos e irão se incorporar naturalmente ao nosso florilégio canônico.

Merece entrada especial o poema “Lavoura de galáxias”, constituído de doze raios rotativos em torno da mãe, eternizando microcosmos da infância. Por mais que poeta diga que “se fez rouco” com aquela morte, é dele o grito e os espectros, em “sutis sons de galáxias”, das lembranças. Quase inconcebível que as lembranças se façam com “microvilosidades de sonhos” vindas de “Diafragmáticas rotas de ar”. A raridade das palavras não ocorre para suntuosidade, ufanismo poético, mas pela dificuldade do sopro do ar, sua falta, para registrar a ausência da mãe. Na ausência não há respiração. São doze raios com pouco espaço para respiração, e o uso de versos milimétricos, pois a ausência não ocupa espaço. Resta o quarto vazio, sem “aonde/arrumar teus chinelos”. A poesia, em Marcos Freitas, não é só a oportunidade de tocar na Paideia do seu tempo, mas também de validação da memória.  

Sem perda da fluência com o uso de palavras raras, dos versos aforísticos de crítica social e de abordagem do microcosmos das florestas e da cultura dos povos primitivos, a poesia de Marcos Freitas quase se insere na poesia de invenção. No entanto, não o preocupa o sincretismo, mas o acréscimo de uma tonalidade crítica, que passa a jazer sobre as margens das palavras. Preferível ajustá-lo à linhagem dos hierarcas universais, poetas dos momentos trágicos. Seria Píndaro, seria Horácio, se não fosse Marcos Freitas, o que habita entre nós. Cada época histórica precisa do seu poeta de ávida lírica trágica para tocar no processo de estabelecimento da ética do homem do seu tempo. O poema “direito à vida”: 

 hoje li sobre cidadania

e o que isso seria?

cidadania hoje

é manter-se vivo

em plena via

cidadania hoje

é manter-se vivo

em plena pandemia

 Talvez a poesia nem seja o que mais tome o tempo de Marcos Freitas, pois o que passa a integrar a vida deixa de ser percebido. O coração pulsa, se não paramos para observá-lo? Sentimos a ordem que enviamos para os pés avançarem? A poesia, para Marcos Freitas, é uma inserção de um item a mais, quase despercebido, às coisas que estão por aí, pois a matéria de sua poesia surge do próprio impulso de viver e dele não mais se desvincula.  Ela é só o devaneio de quando o autor escapa do abandono na floresta e termina o feitio das pipas da rua Gabriel Ferreira. Depois de centenas de trilhas por matorrais, eis que se manifesta e se integra ao seu/nosso percurso, com toda plasticidade, riqueza de vocábulos que o corretor ortográfico se sente incapaz de reconhecer, junções sonoras, um poema como “Arborios” (forma especial idêntica assume o poema “xerofilia”), que o feitio não pode ser atribuído à Poesia Visual, pois esteve sempre à espera do autor iluminado para torná-lo reconhecível como elemento plasmado no Universo. A floresta se apresenta íntegra, uniformizada, pelo alinhamento justo das espécies. O poema também ajusta os elementos como a floresta:

 

Acariquanas berós jurus

Juruá carapanaúbas madeira

Coataquiáuas xingu cumarus

Paricás mungubas morototós

quarubas tauarís árvores-rios

 

Seja em apresentações de seus livros, em páginas virtuais e da imprensa, vários intelectuais destacam o mérito crescente da poesia desse poeta, tais como Antonio Miranda, Anderson Braga Horta, Jorge Amâncio, Kori Bolívia, Rogério Salgado, André Giusti, José Roberto da Silva, Edmar Oliveira, Alicia Silvestre e Batista de Lima. Para finalizar essa peroração, assumo as palavras da autoridade de Marcos Fabrício Lopes da Silva, para quem Marcos Freitas vem construindo uma “obra fascinante que desperta o impensado, adormecido no sono dogmático; é pensar no impensado, o que mais se dá a pensar”.

Pensemos e flertemos, intensamente, com a poesia de Marcos Freitas!


Brasília, agosto de 2023.


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