27 de maio de 2016

Notas de leitura - Eça de Queiroz


Para Jacinto Guerra


Não sei aquilatar quanto de cinzas ainda ocupa minha visão para ultrapassar as multifaces do romance A cidade e as serras, de Eça de Queiroz. Li na juventude O crime do padre Amaro e, há uns três anos, Os Maias. Não sei quando fiz a primeira leitura de O Mandarim, que foi refeita agora com outro olhar, mas que sempre me abriu fundas estradas na imaginação, pois é impossível sairmos ilesos do terreno das fábulas.
                Acredito que, em A cidade e as serras (não sei por que ao tratar dessa dicotomia põe a cidade no singular e as serras no plural, pois não é só Paris, no final do século XIX, que expressa os efeitos da industrialização), Eça de Queiroz faz um ajuste de contas com o sentimento de desconforto do seu tempo e também com as angústias pessoais. Constrói fabulação que irá contrapor a Schopenhauer e também a construção da ambiência da amizade e da família para enfrentar a história pessoal. Eça foi criado pelo avô como se fosse um bastardo depois de renegado pelos pais que o conceberam antes do casamento.
                O personagem principal de A cidade e as serras, Jacinto, é construído na voz de um segundo personagem, o narrador José Fernandes. Ambos herdeiros de famílias rurais portuguesas, que vivem em Paris na primeira parte do romance, imersos na futilidade do inútil conforto da vida moderna, que, pela nascente industrialização, sabe apenas construir caixas e caixas de objetos que podem ficar abandonadas no meio do caminho sem apresentar nenhum prejuízo ao percurso dos seus donos. Enfim, esses personagens cansam da metrópole e precisam retornar às origens para retomar a originalidade espontânea da natureza, mesmo quando ela ruge tempestades sobre os inquilinos da terra.
                Desde a juventude, nunca tive dificuldade com o estilo ímpar de Eça, num português exemplar que chega a ser chato, parecendo arcaico. Se vivi num mundo arcaico, quase colônia perdida de portugueses antigos no perdido interior de Goiás, a linguagem arcaica me é familiar. Em A cidade e as serras, estranhou-me a o diálogo monossilábico, mas também isso, no estilo de Eça, também me é familiar, pois na família goiana arcaica o diálogo não é expansivo, se as expressões da fala são notas pontuadas, que denotam apenas a confirmação presencial do fato. Pois então. Veja este diálogo do romance:
Jacinto adiante, na sua égua ruça, murmurava:
- Que beleza!
E eu atrás, no burro de Sancho, murmurava:
- Que beleza!

                Em três outros momentos, Eça me emocionou ao eriçamento da pele.
                No instante em que o narrador vai denunciar a exploração do homem do campo, aparece o movimento socialista nascente na época, que certamente afetou o romancista. A “Civilização reclama insaciavelmente regalos e pompas, que só obterá, nesta amarga desarmonia social, se ao Capital der ao Trabalho, por cada arquejante esforço, uma migalha ratinhada”. Até os grandes escritores cometem os seus cacófatos (por/cada), mas não erram na notação do real. E, adiante, o burguês rural, indiferente ao que ocorre na sociedade, irá descobrir e atuar para se redimir perante a classe trabalhadora.
                Para o narrador que foge do romantismo e do realismo, procurando ingressar numa radicalidade moderna, Eça tem de fazer sua entrada na natureza enfrentando esse rito de passagem. Num mesmo parágrafo se mantém romântico (Por toda parte a água sussurrante, a água fecundante...), ou se mantém simbolista nas repetições (Brancas rochas, pelas encostas, alastravam a sólida nudez do seu ventre polido pelo vento e pelo sol; outras, vestidas de líquen e de silvados floridos, avançavam como proas de galeras enfeitadas); mas realista social, por que não, utilitarista capaz de presenciar o lucro na fartura (notou a robustez e a fartura das oliveiras).
                Nesse que é quase uma obra póstuma, pois Eça faleceu quando revisava as suas provas, há uma antevisão da época e também premonição do que viria a ser o confronto entre conhecimento e utilitarismo. Jacinto se envolve em projeto social junto aos seus trabalhadores e, após os personagens estarem instalados e organizados no meio rural, onde reina a natureza, a organicidade, o narrador retorna a Paris. Para formular a premonição de confronto do homem que virá, ele vai parar por acaso num ambiente universitário – num episódio quase extemporâneo dentro da narrativa só para a fabulação do futuro –, só para que dentro de uma aula um estudante, “abortozinho de rapaz”, berre contra o narrador, isto é, contra o ensino de humanidades: “Sale Maure!”. Na antepenúltima página do romance, este grito de “mouro imundo” expressa a repugnância da modernidade que se aflora no despertar do Século XX contra as doutrinas consideradas inúteis, que não geram lucro, bem como antecipam a movimentação social de intolerância, na Europa, contra algumas raças. Se Eça estivesse por aqui iria ver como esse berro ecoa ainda mais alto na pós-modernidade.
                Assim como em O conformista, de Alberto Moravia, o narrador acaba não de envolvendo nalguma resistência, pois, em vez de promover enfrentamento deste caos que se descortina no cenário europeu, que iria culminar na instalação de governos totalitários e na deflagração de guerras mundiais, prefere fazer um retorno de se entocar n”as serras” e, certamente, assistir à distância o movimento dos canhões. E quem não enfrenta acaba contribuindo para a evolução de movimentos destroçadores da ordem da Humanidade.
                Ao longo da escritura destas notas, reli O Mandarim. Encanto de narrativa fantástica, que denuncia, certamente, o colonialismo.  Depois de tocar a campainha de se apossar dos bens de outros povos, nada mais resta para reparar a destruição que o gesto acarreta. Portanto, Eça de Queiroz não é só artesão da língua portuguesa (para ele, uma viagem não é simplesmente embarcar, uma partida, mas “pus a proa ao Oriente”), sobretudo é o cronista visionário do fim de uma época, de uma virada de século.

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