4 de julho de 2020

Pedra negra sobre uma pedra branca

César Vallejo

Morrerei em Paris com aguaceiro,
de tal dia eu já tenho lembrança.
Morrerei em Paris - e não fujo -
Talvez uma quinta-feira, como é hoje outono.

Quinta-feira vai ser, porque hoje, quinta-feira,
que proseio estes versos, os úmeros deixei na pior
e, jamais como hoje, voltei,
com todo meu destino, a me ver só.

César Vallejo morreu, espancavam-no
todos sem que ele nada lhes fizesse;
nele davam duro com um pau e duro

também com uma soga; são testemunhas
as quintas-feiras e os ossos úmeros,
a solidão, a chuva, os caminhos...


Versão: Salomão Sousa

11 de junho de 2020

A aranha

César Vallejo

É uma aranha enorme que já não 
anda; uma aranha incolor, cujo 
corpo,
uma cabeça e um abdômen, sangra.

Hoje eu a vi de perto. E com que
esforço para todos os flancos 
seus pés enumeráveis alargava.
E pensei em seus olhos 
invisíveis, os pilotos fatais da
aranha.

É uma aranha que tremia
fixa num fio de pedra;
o abdômen de um 
lado, e do outro
a cabeça.

Com tantos pés a pobre, e ainda não 
pode resolver-se. E ao vê-la
atônita em tal transe,
hoje eu senti pena dessa viajante.

É uma aranha enorme, a quem
impede o abdômen avançar a
cabeça. 
E pensei em seus
olhos e em seus pés 
numerosos...
E senti pena dessa viajante!

Tradução: Salomão Sousa 

10 de maio de 2020

Não aguento mais ler, folhear
os raios de sol pela janela,
escorar-me nos degraus da área.
Dobradas, as pernas ardem.
Por mais que substitua os calçados,
os pés suam e, gélidos, me torturam.

Nada me soa biográfico
se não me sinto um homem
que seja sombra na areia, vulto
homem movente na água.
Não sei em que ameaço
o projeto, o entupimento
de um cano ou a estação.

Não imagino porque desconfiam
que eu desejo atravessar,
se pretendo abraçar
ou levar a chave.

Tal o incômodo que fecho
com cola venenosa
a entrada do formigueiro.
As formigas a saírem
dos furos do rejunte da janela
constituíam uma distração.
Limpar a pia será bem mais
solitário após o formiguicídio.

Quem foi à praça para o manifesto
com seu punhado de tubos
de pasta de memória venenosa?




5 de maio de 2020

SUGESTÕES DE LEITURAS PARA A TAL DE QUARENTENA

           Por Danilo  Gomes

Nesta terrível temporada da pandemia que assola o mundo, temos tido belos exemplos de solidariedade, de ajuda de todos os tipos, de mutirões  voluntários para amenizar o sofrimento. O egoísmo tem dado lugar ao altruísmo  e ao  heroísmo em benefício do próximo. Vem, assim,  em boa hora a oportuna iniciativa do Presidente da Academia Mineira de Letras, escritor e professor Rogério Faria Tavares, de solicitar aos membros da Casa a indicação de bons livros para serem lidos neste tempo de exílio forçado, por meio  do site e do Facebook  da  nossa tradicional  agremiação. Foi a mensagem que recebi de Gabriella  Pawlowski, estagiária da área de comunicação da Academia a que tenho a honra de pertencer desde 1995, sucedendo ao consagrado  Cyro dos Anjos (primeiro Presidente da  Associação Nacional de Escritores-ANE, hoje presidida por Fabio de Sousa Coutinho)  na cadeira nº 1. Presidia a  Academia (hoje com 110 anos) o saudoso benemérito Vivaldi Moreira, mais tarde  justamente  aclamado  Presidente Perpétuo, graças à sua dedicação e fecundo trabalho.

Ofereço minha modesta contribuição.

Sempre gostei muito de livros de crônicas, memórias, biografias, até diários, e também de contos e romances de aventuras. O  que não dispensa um Machado de Assis, um Flaubert, um Stendhal, um Vitorino Nemésio, um Luís Forjaz Trigueiros, Eduardo Frieiro,  Ítalo Calvino, Borges, Isaac Bashevis Singer, Umberto Eco, Gabriel  García Marquez, aqueles  notáveis  russos, Thomas Merton,  Carlos Fuentes, Naguib  Mahfouz  (o egípcio ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1988,  autor de Noites  das  mil  e uma  noites), Rachel de Queiroz, tantos outros. Em especial nossa rica literatura brasileira, como vocês sabem. Bibliotecas e livrarias  (e sebos !), estantes virtuais : são  um nunca  acabar. Ainda bem.

Mas, nesses tristes dias de pandemia de coronavírus ( covid-19), de confinamento social, permitam-me sugerir  uma leitura mais leve, mais amena, posto que muito interessante e  sedutora.

Para começar, crônicas, um dos gêneros de minha predileção, um rio que corre desde o Império, com o já citado Machado (o  amado Bruxo do Cosme Velho), Alencar, Raul Pompéia, Francisco Otaviano de Almeida Rosa, Lima Barreto,  João do Rio, Bilac, Vicente de Carvalho (também poeta), tantos outros, chegando a Carlos Drummond, Bandeira, Rubem Braga, Elsie Lessa, Paulo Mendes Campos, Vivaldo Coaracy, Alberto  Deodato, José Bento Teixeira de Salles, mais outros tantos. Recomendo abrirem o Portal da Crônica Brasileira, na internet, recentemente criado em São Paulo  pelo belorizontino  Humberto Werneck e uma equipe de primeira linha.

Não esperem deste modesto cronista  uma vistosa relação erudita e sofisticada. Não destacarei nenhuma obra específica da nossa  admirável literatura brasileira. Cometeria injustiças, destacando uns e olvidando outros. E  nada de Plutarco, Suetônio, Tácito, Tito Lívio, Júlio César, Cícero, Thomas  Carlyle, Edward Gibbon  ou Mommsen, ligados ao mundo da História, minha paixão.  Sou navegador de pequeno  curso, de cabotagem, de beira-mar. Aqui e agora, abro  minha lista com As minas do Rei Salomão, de Henry  Ridder  Haggard, que encanta jovens, adultos e idosos, como eu, avô de quatro netos. Os leitores de As minas do Rei Salomão caminham penosamente em busca do tesouro  real no misterioso  e mágico  coração da África, paraíso que seduziu  Hemingway, deslumbrado com as neves do monte Kilimandjaro. As minas do Rei Salomão virou filme duas ou três vezes. Já li o livro umas três ou quatro  vezes, em diferentes traduções para o nosso vernáculo. Eça de Queiroz, cativado,  o traduziu para o português. O livro passa até como obra  dele, em certas errôneas  bibliografias. O  talentoso grande  homem da Póvoa do  Varzim  era apenas um fã da criação do  autor inglês.

Prossigamos com A ilha do tesouro, de Robert  Louis Stevenson, e com Nos  Mares do Sul, do mesmo autor escocês, que também escreveu O médico e o monstro.

Meu  saudoso  amigo  poeta, prosador e acadêmico Lêdo Ivo ( cuja vasta obra  a escritora e acadêmica Elizabeth  Rennó conhece muito  bem) escreveu um livro intitulado  A  ética da aventura. Ele  foi  (como eu e meu velho amigo e confrade acadêmico Pedro Rogério Moreira)  um infatigável leitor da Coleção Terramarear, da editora Saraiva. Era uma coleção de  livros de aventuras. O escritor alagoano aborda, no capítulo inicial, as famosas  obras aureoladas pela aventura, pelo maravilhoso, pela imaginação, pelo encantatório, saídas das penas de Emilio Salgari, Mayne Reid, Edgard R. Burroughs, Ballantyne, Stevenson, Kipling, Mark  Twain, Jack  London, Ridder Haggard, Fenimore Cooper, Melville. Mas Lêdo Ivo não se esquece de mencionar Proust, Thomas  Wolfe, Dickens, Balzac e o nosso  grande  escritor  cearense  José de Alencar.

Lêdo Ivo (que foi membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia de Letras do Brasil, esta  fundada em Brasília em 1987) poderia enriquecer sua narrativa mencionando Daniel Defoe, que maravilhou o mundo com  Robinson  Crusoé, Os amores de Moll  Flanders, Uma história dos  piratas e (cruz-credo !)  Diário do ano da peste.

Nesse capítulo A ética da aventura (que dá título ao livro), Lêdo Ivo  (1924- 2013)  poderia  acrescentar autores como Sir Arthur Conan Doyle (o pai de Sherlock Holmes e do fiel  Watson), que escreveu também Contos de piratas.  Presumo que Daniel Defoe, Conan Doyle, Jules Verne  e Karl May  não foram contemplados na Coleção Terramarear.

Acabaram ficando  de fora também Jonatham  Swift (As viagens de Gulliver), Sir Walter Scott (Ivanhoé) e outros clássicos de narrativas desse jaez, muitas delas com ensinamentos morais, explícitos ou subliminares.

Escritores dos séculos XVIII e XIX gostavam muito de escrever sobre façanhas de piratas, flibusteiros, bucaneiros, corsários,  reluzentes tesouros escondidos no Caribe, aventuras oceânicas, galeões carregados de ouro e prata, pau-brasil, papagaios, macacos  e outros animais exóticos, especiarias etc. E o público adorava (vá lá o verbo sacramental)  essas  histórias excitantes. Já antes, os próprios livros em forma de diários de Colombo, Vespúcio, Pigafetta e outros navegantes viraram best-sellers. 

E nem falamos de  Heródoto, Estrabão, Marco Polo, Fernão de Magalhães e Sebastián Elcano, Vasco da Gama, Cabral, Ponce de León, Alvar Nuñez Cabeza de Vaca,  Fernão Mendes Pinto, Capitão James Cook, Fernão Dias Paes Leme, Henry  Stanley, Richard Francis Burton (o do século XIX), Amundsen, Scott,  nosso bem-aventurado Cândido Rondon.

Para suportar o  forçado recolhimento  caseiro  nesta  amarga  quarentena, permitam a este modesto escriba  também sugerir  a deliciosa fruição da leitura das variadas edições desse livro imortal e monumental  das literaturas persa e árabe que  é As mil e uma noites. Um clássico do encantamento e da fantasia. Temos uma impecável, talvez insuperável tradução do  árabe por Mamede Mustafa  Jarouche, professor da USP (são quatro volumes maravilhosos).

A bela Scherazade, com suas histórias contadas para o poderoso sultão Shahriar,  pode ajudar-nos a tornar nossas  noites de quarentena mais agradáveis e até felizes. As mil e uma noites, com ou sem tapetes mágicos: esse clássico  escrínio  de histórias  é um fiel retrato da alma humana, dividida entre o Bem e o Mal, a poesia,  a luz e as trevas. Com sensualidade, humor, suspense e sabedoria. Um livro de muitos autores, escrito durante séculos. Aqueles contos são obras-primas da arte de  contar histórias. Naquele conjunto, os leitores encontrarão  maravilhas, encantamentos, magos, trapaceiros, ladrões, assassinos, dervixes, princesas, odaliscas, pessoas muito simples do povo,  grão-vizires, eunucos, megeras, tiranos, invejosos. Entre o fantástico e o sobrenatural, terão surpresas, espantos, sustos. Ali,  as  paixões humanas em tumulto. O mundo em que viveu o poderoso sultão Haarum-Al-Rachid.

Ensina-nos o mestre Mamede Mustafa Jarouche, diante da  magia de Bagdá, Kufa, Mossul, Cairo, Damasco e dos mares singrados por Sindabad, o marujo, o navegante:

São todas narrativas que, a seu modo, discorrem  sobre o homem, suas ambições e seu destino; falam, portanto, a uma vasta gama de seres humanos e sensibilidades, em muitos tempos e lugares, apresentando, enfim, aquela característica tão peculiar não só às Mil e uma noites, mas a  toda grande obra literária: a capacidade de interessar e deleitar, indistintamente, qualquer leitor que ame uma boa história. 

Zuenir Ventura escreveu: “Quem apostou na morte do livro morreu primeiro.” E Michael  Ondaatje, autor de O paciente inglês, cunhou esta frase: “O livro é um jantar solitário.”

O tempo dos leitores confinados em casa será  também muito  bem empregado na leitura de duas obras sedutoras e muito bem ilustradas: Manual dos lugares fantásticos, de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi, e História das terras e lugares lendários, de Umberto Eco.

Fé em Deus, saúde, serenidade, esperança, um pouco de meditação  e prazerosa leitura para todos vocês, queridos e pacientes leitores! 

Brasília, 30 / 4/ 2020.

             
             
           
               

14 de fevereiro de 2020


Por que ser contra?
O pulgão é a favor do broto.
A abelha é a favor do mel.
A mosca, a favor do fruto.
Ser a favor de uma camisa,
de onde pisar, de uma porta
por onde entrar.
Tão triste ser a favor
do direito de chutar,
de adulterar,
designar com um x
para extinguir.
Indigno.

3 de fevereiro de 2020

Um filme para estimular o heroísmo

Por que o olhar de Lucky é duro e a sua queda não pode ser em razão de um problema físico? Por que sua marcha é rija, com total confiança no destino? É sortudo só por estar vivo? Possivelmente o cineasta John Carroll Lynch nem tivesse em mente – no momento de sua construção - a dimensão desse personagem, ao qual podemos atribuir vários significados ao analisá-lo. As fábulas tem vida própria, pois surgem da necessidade de seus autores interpretarem estados psicológicos ou de articulações de poder de um momento histórico. As fábulas são raras, mas existem para elucidar os enigmas da realidade, que muitas vezes se disfarçam para nos arregimentar ou destroçar. A História mostra a real ocorrência dos fatos. As fábulas, os mitos e as metáforas antecipam a interpretação dos fatos – venham eles a ocorrer ou não. 

Lucky, personagem principal do filme que leva seu nome, é um cara sortudo. Coube-lhe ser cozinheiro na guerra, escapando de comparecer à frente da batalha, e acresce-se a essa sorte o fato de o navio em que servia sair ileso das batalhas. Mas essa é história do passado, pois, quando o filme começa, ele está com noventa anos, fazendo cem exercícios de yoga a cada manhã para não se debilitar fisicamente. No entanto, ele resiste heroico e disciplinado numa comunidade isolada composta por indivíduos marginalizados, onde os cactos bicentenários também resistem na paisagem árida e onde um cágado foge do aprisionamento e circula livre.
Nenhum filme me deixou tão impressionado nos últimos tempos quanto esse, nem mesmo Parasita, que concorre à edição do Oscar em 2020, que trata da situação de uma família desempregada (marginalizada do processo econômico) que se infiltra na residência de uma família de alta concentração de renda, ou A Partida, que traz a temática da redescoberta do valor da vida a partir da intimidade com a morte.

Lucky contem temática inversa do filme A Partida - mostra o esforço heroico do anti-herói para não deixar a vida desgarrar-se com a proximidade da morte, ainda que mantenha a constante consciência do absurdo da existência (Você não é nada! As palavras do roteiro podem remeter a Camus, Sartre ou Melville, só que aqui sequer existe o absurdo da baleia para enfrentamento, pelo menos em seu estado físico, arpoável. Onde está o inimigo? Em épocas de sociedades anônimas -, não sabemos qual figura nos deixa fora da inserção nos processos socioeconômicos. Achamos que é o político, mas quem alimenta o político? Até o marginalizado - o próprio prejudicado ou futura vítima do processo - vai lá e engorda Moby Dick com apoio cego, sem consciência que vai sendo engolido aos poucos até a extremada armadilha final.)

Como no filme Paris Texas, Harry Deam Stanton circula por paisagens desérticas. Ao contrário do tema de Wim Wenders, onde a busca era pela afetividade perdida, em Lucky – talvez escrito para homenagear a trajetória desse grande ator -, não interessa mais a afetividade, talvez integrar-se na paisagem derruída que (por sorte?) lhe restou. E essa é a grande problemática enfrentada pelo homem de épocas extremadas. A arma é a perda de afetividade, bem como o destroçamento dos espaços. O muro é perda de afetividade. A necropolítica, nem se fala. E Lucky resiste, pois ser indiferente também é concordar com a engrenagem da perda da afetividade. Toda vez que digo que 'não dá tempo para acontecer" ou que "não vai acontecer", dou a minha anuência, pois a neutralidade também é combustível para que o extremismo avance mais rápido com as suas armas. A concordância de Lucky permitiria que a arma fosse retirada da parede. Por isso, ele não ri, não se permite dar passos em falso. Se leva uma queda, indaga, à exaustão, as razões dessa queda.

O ideal da crítica de cinema seria a geração de outras imagens para montagem do teor da crítica, mas só a palavra monta processos de interpretação. Por mais que a imagem mostre o real, a argumentação é construída com discurso. O filme Lucky – pelo menos na minha interpretação - é uma fábula que estimula a construção crítica sobre as relações dos indivíduos frente às engrenagens da realidade atual. Como encarar a velhice, a solidão, a perda do Paraíso da sexualidade e da inserção econômica? E, sobretudo, como harmonizar-se no processo de divergências de compreensão do destino, sobretudo do processo da necropolítica, se a administração decide deixar comunidades inteiras à própria sorte (e, em seguida à deterioração, instala o sniper)?

Podemos até conferir que essa não seja a intenção inicial ou da gênese do filme, mas ele acende um alerta não só para o apartado. Adverte-nos, ou pelo menos devemos ler isso na interpretação do filme, já que interpretar é dar significado e não só “ver” - como a próprio discurso do Realismo do filme nos propõe -, adverte que o marginalizado deve continuar vivendo com heroísmo, sem confessar o medo fora do próprio círculo de confiança e de compreensão da marginalização, resistindo sem mostrar fragilidade e nunca perder o poder de indignação, nem que seja xingando na direção da engrenagem responsável pela construção da exclusão (pois a engrenagem está atrás de uma porta, de um muro, dentro de um gabinete), e prosseguir a marcha com passos rijos. Confessar medo ou desistência, na vigência da administração extremada, é propor ao que está no comando, no controle da mira, que avence na eliminação. Se cair, pois nem sempre conhece o que está sendo articulado à sua revelia, deve negar e demonstrar que a queda não foi causada por sua ação.

Aqui ainda cabe uma divagação do intérprete. Só argumentamos com aquilo que sabemos ou desejamos. O intérprete com interesses em ocupação de espaço político ou ampliação de espaço de ocupação, verá na comunidade do filme (ou de uma cidade brasileira) um local para instalação do sniper, pois ali estão reunidas ótimas vítimas a serem eliminadas. Até a interpretação passou a ser feita com a ótica dos interesses do intérprete. Só interpreto com aquilo que aprendi ou que atende aos meus interesses. Aquele que viveu eternamente dentro da religiosidade, dirá que os personagens estão aprisionados em determinada realidade por falta de Deus. Aquele que deseja espaço para ampliação do poder econômico contratará o atirador para desocupação do território a ser ocupado. A Psicologia Social compreenderá que o fechamento das fronteiras está destruindo os indivíduos.

Ainda voltaremos a repetir: cada expectador dará o significado a essas metáforas com os seus interesses ou com as ferramentas interpretativas que armazenou no percurso do processo de formação. Prefiro compreender que aquele que foi marginalizado contra seu interesse (cágado) tem de ser libertado e indenizado. Julgo que aqueles que posicionam o sniper diante das comunidades marginalizadas são uns “c.zões” covardes.

Buscamos filmes que atendam nossos interesses. Uns buscam aqueles com temática que correspondam à própria religiosidade; outros, que estimulem a sexualidade ou a violência. Prefiro filmes como Lucky, que trazem grandes momentos de silêncio para eu preencher com a imaginação. Ou incluam metáforas que eu possa dilatar com a interpretação. E esse filme é um prato cheio de metáforas poéticas. Se mato um rouxinol, silencio o mundo. Se aprisiono um cágado, impeço-o de buscar - em liberdade - o que desejava. Posso adotar um rouxinol, mas não um grilo, pois o grilo é alimento para aves e peixes. E o telefone vermelho? Quem está do outro lado para responder aos questionamentos de Lucky, estimulando-o a compreender a existência? O dicionário sobre o púlpito? A realidade explicada, compreendida, pode ser mais útil do que a realidade aceita de forma dogmática? As divergências aceitas geram harmonia, mas eliminam os riscos da instauração de polaridades e agressividades?

25 de janeiro de 2020

Eu sou cada vez mais índio

Minha avó sentada no estrado
a mascar com seu único dente
o naco de fumo com cinzas
Ao me lembrar do cansaço
de minha avó a se lembrar de uma tribo
eu eu sou cada vez mais índio

Ter uma avó índia
é ter um corpo onde acariciar
e também mãos a encher uma despensa
Ter uma coisa nos leva a outras
Uma despensa leva a biscoitos
a travessas de fubá de milho e arroz
Para ter uma rachadura
nos dá a certeza de termos uma casa
e corremos o risco também
de termos de instalar nossa rachadura
nos atrevimentos de um muro

Ter um gavião também não soluciona
a questão de ser livre
se a avó nunca irá sair por uma estrada
E quem diz que uma estrada dá o destino?
A estrada não passa de um ponto de partida
Sempre que saímos de casa
vamos encontrar pelo caminho
com aqueles que renegarão
a nossa rachadura e a nossa tribo

A minha avó rodava o moinho de café
arcava sobre a fornalha com as mãos nos quadris
para com sopros avivar os tições
A minha avó índia me mandava à saroba
buscar casca de barbatimão
e assim me ensinava a tintura
e a me tornar cada vez mais índio

RETRATO, poema de Antonio Machado

Traduzi para meu consumo o poema "Retrato", do espanhol Antonio Machado. Trata-se de um dos poetas de minha predileção, assim como...