31 de janeiro de 2023

Filme Tár

Levei meus netos ao cinema para assistirmos ao filme Tár (o título talvez remeta ao cineasta Béla Tarr), que concorre ao Oscar em várias categorias. Por diversas razões, fui atraído ao cinema. A personagem é esquizofrênica, é maestro, a música é de Mahler, e o roteiro não é trivial. Num primeiro momento, o filme certamente terá sido cansativo para meus netos (12 e 15 anos), pois na primeira hora o roteiro inclui cenas paradas muito longas dedicadas a debater o cotidiano dos personagens, além de inclusão de assuntos muito sutis sobre o universo da música sinfônica (clássica). Esses diálogos serão bem ásperos para o expectador que não for íntimo da história da música sinfônica. Acredito que alguns diálogos são bem dispensáveis até mesmo para redução do tempo de duração do filme (quase três horas). Depois de uma hora, o filme passa incluir tensão psicológica, sem nenhum obviedade até o final, que avançam para questionamentos bem atuais (lesbianismo, assédio, convicções autoritárias de comportamento social), com consequências bem amargas. Eu retornaria ao cinema, mas chegaria uma hora atrasado. Mas recomendo, sugerindo inclusive que as pessoas ouçam antes a Quinta Sinfonia, de Mahler, e o Concerto para Violoncelo, de Elgar. Há referências bem marcantes sobre Marlon Brando e Karajan, que muitos expectadores certamente sairão boiando da sala de cinema. É uma obra de referências, necessárias, senão o interesse pela cultura só irá se arrefecendo. Não me arrependo de ter levado meus netos. O de 15 anos gostou da tensão dramática. Eu também, somando-se, é claro, as referências culturais sutis,

que não serão alcançadas pelo expectador não afeito ao universo cultural. 

15 de janeiro de 2023

A desconstrução pela alteridade

Como seria se eu estivesse do outro lado?
Qual seria o meu prazer
em quebrar o relógio do tempo,
furar uma pintura de Di Cavalcanti
ou defecar num pequeno monólito?

Por mais de quarenta anos eu fui íntimo de algumas das obras danificadas durante o ataque terrorista às sedes dos Três Poderes. Por inumeráveis vezes, para descanso ou para aguardar um amigo ou autoridade, sentei-me nas cadeiras de Oscar Niemeyer, tendo como vista de horizonte o jardim interno da Câmara dos Deputados com paredes de azulejos de Athos Bulcão. Por vezes, a água da chuva; por vezes, os jardineiros organizando as ramas. Eu, Marlan Rocha e Orlando Tejo discutindo a transposição do Rio São Francisco e a obra de Patativa do Assaré.

Edgar Morin diz que após a queda de Hitler, foi perdido o prazer de ter contato com a Poesia. E este é o meu desencanto. Como retomar o assento com um amigo que passou a estar enamorado do autoritarismo? Que, certamente, esteve a ponto de me denunciar por ter conhecimento para não me deixar encantar pela nova mercadoria do liberalismo (a mentira)? Para que eu me encante por alguém, os seus pensamentos precisam apresentar alguma jusante com os meus, como no Tao, onde as águas se encontram. Queiramos ou não, as águas vão dar no mesmo vale.

Carregamos mais angústia, nestes momentos, do que vontade de escrever e de retomar amizades que admirávamos e foram infestadas por algum vírus daninho. Um ator declarou à imprensa esse seu mesmo sentimento: um fascista não merece ser artista. Se eu me bandeasse para a loucura de domínio do poder pelo militarismo, esse seria o meu sentimento. Eu me sentiria indigno de ser artista, indigno inclusive de participar das entidades culturais. Iria me sentir indigno de ter amigos.

Nestes dias de estupefação política, revi alguns poemas e me ocupei com filmes europeus, sobretudo de Agnès Varda (essa intérprete das imagens de construção poética quando da abordagem do cotidiano). Agnès Varda é exemplar em demonstrar que não podemos nos deixar ser engolidos pela depressão. Sempre alcança uma alegria a partir do depoimento mais desagradável de um entrevistado ou do encontro com a derrota de um desvalido.

Ainda assim me assola o desânimo. Um vizinho retorna do QG, com o carro todo embandeirado e manifesta de forma deseducada o seu perfil fascista. Põe o som automotivo nas alturas para mostrar que não está preso e, em seu ponto de vista, para afirmar que a sua razão não foi abalada. Aquieto-me, pois num clima similar ao hitlerismo-stalinismo, podemos ser atingidos como ocorreu com os prédios dos Três Poderes.

A poeta Kamilly Barros me envia uma mensagem animadora.

Apesar dos ataques dos que não têm o fair play, ele (o ano de 2023) será vermelho-esperança. (...) E que haja muita poesia em nossas vidas.

Digo-lhe que, no meio desse pandemônio em que estamos, a sua mensagem é brisa de bálsamo e que, certamente, vamos nos encontrar no decorrer desse ano. E fiz alguns questionamentos sobre minha leitura atual de Edgar Morin.

Só nos localizamos no mundo com indagações. O que é importante para mim, em que acreditar, em que pensar, onde eu estou, quem eu sou, são perguntas de Morin. Temos de fazer as nossas:


O lado do outro é meu lado?
O que desejo interessa ao desejo do outro?
O que faço é uma contribuição
para o processo de avanços da Civilização?
Será que ainda nos interessa sermos civilizados?

Morin adverte que “uma verdade parcial é suficiente para erros globais” e que “a verdade total é um erro total”. E assim temos de ficar com Popper: a razão é aquela que decidimos juntos, pois só a razão comum nos interessa. “Sigamos juntos, então, tu e eu”, como inicia o belo poema de Eliot.

Complemento as minhas dúvidas, que foram a razão desses rascunhos desconexos. O que adianta o conhecimento que adquiro se ele não contribui para construir a harmonia social ou o ordenamento político-social? O conhecimento fechado em si mesmo, que não participa, não faz nenhuma demolição, assim como não adianta uma força represada num músculo. Aquele que quer domínio, sempre procura rechaçar quem sabe. E quem está cego não compreende o processo e fica tão siderado com as verdades absorvidas através do massacre da mentira, que passa a se sentir num hospício, apesar de não desistir de julgar-se dono de todo espaço de poder. Passa a nos odiar com tamanha profundidade, mas, na impossibilidade jurídica de nos eliminar, sai de sua casa para vir urinar em nossa porta. (Sempre recorro a essa imagem forte, pois ela ocorreu de fato, apesar de eu não me encontrar em casa no instante da prática do ato.)

Quem sabe não pode se intimidar. É mais confortável adotar o silêncio, mas as ameaças são idênticas se adotamos o silêncio ou o pronunciamento. Pelo menos o pronunciamento gera alteridade. A alteridade é o confronto dos indivíduos, com suas dúvidas, suas realidades, de onde são sacadas descobertas e esclarecimentos. Com a alteridade, sentimos que não podemos sair por aí a sacar pedras e cobras e lagartos. Sendo assim, ainda que impere profunda animosidade ou risco, não podemos perder a disposição de participar do diálogo e do confronto crítico com o outro. A alteridade é um confronto sem armas. Um personagem infantil de Agnés Varda diz que gosta de pescar, mas sem pegar o peixe. Quem dialoga não se preocupa em impor, mas em encontrar.

A amiga Kamilly Barros complementa, destacando que o meu “sentido de Civilização é o cuidado com o outro, da atenção, da gentileza, é um bálsamo para mim (Kamilly), uma brisa, e para todos os que recebem esses gestos tão delicados e que repercutem dentro de si”. Para ela, as indagações de Morin são fundamentais, pois “nos levam a indagar se a Civilização não precisa estar pautada mais na alteridade do que no Poder, para conciliar desejos tão díspares e não nos machuquemos. Uma alteridade que nos sustente uns aos outros”.

Kamilly lembra que está na faculdade de filosofia fazendo estudos que “tratam da construção de si a partir do embate com o social”. Ela prossegue refletindo se os modelos atuais de Civilização não estão funcionando sem pensamento crítico e se eles não poderiam sem desconstruídos. Ao final de sua mensagem, ela conclui que alteridade tem de fazer parte dos modelos de Civilização para que possamos sentir que são as nossas criações que nos dão Poder.

Importante lembrar que a alteridade só pode ocorrer no embate de grupos divergentes para ser eficaz. Quando pensamos entre iguais, não reconstruímos o que pensamos, não desejamos que o outro participe do Poder e muito menos nos sentimos integrados no sentido de nacionalidade. Só o embate divergente desconstrói certezas infundadas que foram instaladas em nosso consciente. Ou, se nossos espasmos carregam certezas, esses serão acolhidos para construção de espaços comuns e pacíficos. Só indivíduos sadios − sem contaminações, que não partam de patrocínio de interesses setoriais − constroem democracias respeitadas e sadias. A democracia não é uma mercadoria exposta na vitrine a ser comprada com a cotação do dia ou que se imponha com cassetete.

8 de janeiro de 2023

O envenenamento político da nacionalidade

A vida, para existir, tem de se manifestar através da ação e do movimento. No entanto, os seres que se movem ficam expostos aos predadores.

Conscientizei-me sobre a questão do envenenamento político numa manhã em que me deslocava entre cidades de Brasília. Enquanto eu aguardava o ônibus, uma senhora chegou ágil à parada (até ágil demais para a idade que aparentava), ornada com uma roupa muito peculiar, daquelas que aparecem nas figuras femininas da pintura denominada Os comedores de batata, de Van Gogh. O vestido florido, rodado, rosa, limpo, com a touca ampla confeccionada com o mesmo tecido. Uma senhora digna de ser acolhida e amada. Para honrar o encontro, elogiei-a pela elegância. Mas, ato contínuo, ela respondeu que de nada adiantava apresentar-se com elegância, pois estava “envenenada”. Demorei a compreender a aspereza dolorida de sua resposta. Depois de muita conversa, ela confessou que o resultado das eleições presidenciais de 2022 acabara com a sua vontade de viver.



Ficou perigoso pensar não só sobre política. Ninguém quer ser confrontado nos seus pensamentos sobre religião, família, história do País, comportamento social, e até mesmo no próprio campo de minha atuação (a Literatura). Muitas vezes eu me surpreendo odiando o pensamento que outros emitem sobre essas questões. Não me resta outra alternativa senão reconhecer que é real a existência de um esquematizado programa de envenenamento da forma de compreender a sociedade e de pensar os seus destinos. Esse programático projeto de envenenamento da sociedade busca manter os indivíduos à margem da compreensão do seu real papel dentro da organização política do país. Por se ver à margem do processo, intoxicada pela desinformação, a senhora da parada de ônibus se encontra sem razão para viver.

Certa vez, fiz a anotação do aforismo, que serve de epígrafe a este texto, para ser aproveitado no momento em que viesse a escrever um poema ou um artigo. O poema nunca foi escrito e a amplitude do conteúdo da expressão de minha autoria continuou a me instigar sempre que reflito sobre as divergências que surgem quando os indivíduos manifestam seus interesses e conhecimentos. A expressão ganhou maior vigor quando passei a me expor nos momentos de apresentar interpretações sobre o processo político ou sobre outras áreas das atividades humanas, pois as reações são ameaçadoras para aqueles que analisam o vandalismo da ação política, numa demonstração de que o homem se transformou no predador do próprio semelhante.

Os predadores não ameaçam só cidadãos conscientes da real necessidade do ordenamento democrático, mas ficam de prontidão para destruir os espaços que asseguram e representam a democracia (tais como autonomia e sedes dos Poderes). Como odeiam o conhecimento, pois sabem que ele traz ordenamento, atuam para minar as estruturas da educação, das artes e da imprensa, com rede social livre para veiculação de mentiras. Os predadores políticos ficam de prontidão para hostilizar, intimidar e aniquilar o conhecimento e – o que é incompreensível e aterrorizante − sempre dispostos a eliminar, fisicamente, aqueles que mantém postura crítica divergente da linha oficializada através de táticas obscuras pelos ocupantes e defensores do poder autoritário (através de fake news e discursos desestabilizadores).

Inconformados com os desarranjos administrativos e com a incapacidade de obter conhecimento para compreender e estimular o ordenamento sociopolítico, aqueles que se alinham às correntes autoritárias passam a atribuir aos adversários a responsabilidade pelos próprios fracassos, sejam eles familiares, religiosos ou econômicos. Na maioria das vezes, os fracassos são fictícios e são armados por pregações conservadoras ultrapassadas, conforme orientação estimulada por especialistas estrangeiros (cite-se Steve Bennon) para atuação desestabilizadora da verdade. Os adversários − diante dessa fraqueza dos adeptos do autoritarismo em realizar seus desejos e em eliminar as frustrações daí adquiridas – passam a ser seus inimigos. Os envenenados incorporam uma verdade fictícia e, para defendê-la, colocam o próprio corpo em ação (e em risco para si e para o outro). Com essa carga de frustrações, os cidadãos despolitizados (veja-se o caso da senhora da parada de ônibus) passam a ser presas fáceis para se aprisionarem a um envenenamento político pelos setores econômicos e daqueles que se instalam no poder ou dele auferem benefícios. Se passam a viver envenenados, não podem ser contrariados por nenhum pensamento adverso daqueles bordões por eles incorporados. Não são mais cidadãos, mas zumbis depressivos, dispostos a ações descabidas e criminosas.

Nesse processo, o país passa a ser refém de propostas autoritárias ultrapassadas, com o chamamento do “estamento militar” para garantir à força o poder sob o argumento falacioso de que a democracia deve ser tutelada, conforme prega claramente o general da reserva Otávio Rêgo Barros em artigo publicado na Folha de S. Paulo, em 13.2.2023. Ele diz claramente que o “controle civil objetivo” dos militares passa pelo reconhecimento d”os interesses e necessidades do estamento militar”. Assim, o país vai convivendo eternamente sob a ameaça da tutela militar, pois a cadeia de “interesses e necessidades” nunca se esgota. Assim, todos vão colocando os interesses pessoais e de categorias acima da nacionalidade.

Enquanto a sociedade se debate no envenenamento instaurado por esse esquema obscuro, aqueles que pagam para manter a rede de envenenadores vive faustosamente à sombra do caos. E é nas sombras que eles riem de todos que se estertoram, comendo uns aos outros. É nas sombras que controlam e incitam os envenenados para depredar em nome de aproveitadores da riqueza nacional. Bem fazem as emas que se batem em fuga quando são ofertados a elas produtos da mentira. Poderíamos dizer que as emas têm mostrado bem mais sabedoria do que muitos humanos que não sabem reconhecer quando estão sendo passados para trás em seus direitos.

Podemos deduzir da manifestação da senhora da parada de ônibus (talvez emergida da pintura Os comedores de batata) que atua no país um processo maquiavélico de deterioração da política –, processo esse que passou a perder seus principais fundamentos (sobretudo o foco na administração) para centrar-se nos interesses de políticos profissionais, que existem só porque são bancados por grupos econômicos ou porque acharam extratos sociais dispostos a dar credibilidade aos seus discursos de ódio ou de pragmático conservadorismo. Esses discursos são falaciosos, pois não exigem nenhum compromisso de alteração de estruturas econômicas ou de realização de investimentos em infraestrutura e educação. É incompreensível que uma senhora, que nunca teve acesso à formação que lhe permitisse formar compreensão consciente sobre a organização do Estado, possa perder a razão de viver só porque essas camadas usaram canais aos quais ela tem acesso para deturpar a sua apreensão da organização da sociedade. É um esquema torpe, desumano, inspirado nos governos totalitários responsáveis pelas maiores tragédias da História, orientado por figuras nefastas como Steve Bennon.

Nunca o país teve um grupo (em atuação descarada), que não se ocupa em trabalhar pela coisa pública, mas em atender, com falsificação obscura, os interesses de grupos. Tão logo sobem ao parlatório, investe contra minorias. Tão logo fecha um negócio internacional, retorna ao país com as malas recheadas de joias.

Até homens de boa índole se deixam contagiar pela lábia das argumentações falsas e se juntam ao processo de derramamento de veneno. Ao engrossarem o caudal de envenenamento, os homens de boa índole, que compreendem a organização da política, só aumentam o caos que deixa a nacionalidade em risco. O caos arrasta e contamina todos. A História vai cobrar caro. Aqueles que se somam a esse processo serão desmascarados quando for retomada a normalidade. A ocupação do poder acontece de forma cíclica e os inimigos da democracia saem sempre carimbados como inimigos da Nação. É bom não tirar da consciência que a História carimba com tinta inapagável.

Lembro-me da manipulação do eleitorado pela elite tão logo foram convocadas eleições pelo governo que assumiu com o Golpe de 1964. Eu não tinha 15 anos, residente ainda em Silvânia (GO). Lembro-me de meu pai (analfabeto e sem direito a voto) ser convocado para trabalhar (sem remuneração) no comitê da ARENA. Ele sempre aparece na minha memória descarregando caminhões com dezenas de latas de querosene cheias de doce de leite. Eram dias de fartura paga pela elite para que a Ditadura não fosse reconhecida como tal, pois se escondia atrás de um falso manto democrático ao convocar e realizar as eleições contaminadas por hábeis legalidades forjadas. Eu mesmo ainda vivia alheio às maquinações voltadas para a manipulação dos interesses dos eleitores, sendo aqueles dias de fartura uma parte delas. Não enxergava que cada porção de alimento servida naqueles galpões integrava o sutil processo de compra de votos. O mesmo processo voltou a ser usado – velho e batido canto de sereias −, diante dos quartéis no ano de 2022. Só que em 2022 não era a compra de voto, mas a negação da validade do direito de votar.

A elite econômica continua a usar os mesmos artifícios empregados naquelas eleições do pós-Golpe de 1964 ao manter pessoas inocentes nos acampamentos para que seus interesses continuem assegurados. A elite, sobretudo oriunda dos proprietários de terra, não se desgarra do esforço para instaurar o poder autoritário que banque seus interesses, por mais que o processo das eleições esteja ultrapassado e proclamado, com realização e resultados reconhecidos por diversos organismos e nações como limpos e legais.

Então, é o caso de refletirmos: por que preferimos chegar ao ponto de desejarmos matar aquele que pensa diferente de nós, em vez de buscarmos refletir juntos para construção de uma razão comum? Karl Popper relembra que Robinson Crusoé, solitário em sua ilha, sempre terá razão em tudo que pensar, mas será contestado quando outro indivíduo instalar-se ao seu lado.

Retardei por meses o início da escritura desse raciocínio sobre a incompreensão, que beira à agressividade, das pessoas quanto à postura que adotam perante as questões políticas, religiosas, entre outras. As pessoas não se entendem quando se encontram fora de seus grupos. Há exemplo ao meu redor. Uma afilhada minha, ao fazer caminhada portando broche de um candidato, quase foi exterminada por dois jovens que a perseguiram até um local isolado de seu trajeto. Julgavam que ela não poderia diferir do direcionamento político deles.

O indivíduo não se conforma mais em divergir, mas passa a acreditar que tem direito de praticar a violência visando eliminar aquele que lhe opõe com outra postura de pensamento. Quando busca eliminá-lo, o espaço do predador não corre o risco de ser ocupado pelo oponente. Mas é importante ter vivo na memória que a Civilização se constrói com as experiências afirmativas obtidas pelo ato de agir e de pensar, que se mostrem favoráveis à melhor convivência social. Como bem lembra Harari, as Civilizações definem estruturas de poder, religião, produção de bens, educação, cultura e de uma infinidade de outras áreas, para que os homens possam viver em harmonia. Karl Popper esclarece que estas estruturas devem ser definidas pelo conjunto de todos os indivíduos, pois, se forem impostas por um líder, a voz de todos fica apagada pelo jugo do autoritarismo. Para Popper, não basta que a estrutura seja liberal, ela tem de ser também democrática, onde cada indivíduo participe e se beneficie das ações que emanam do poder.

O ódio

Foi oportuno que tenha acontecido o retardamento da redação deste texto com a abordagem dessas questões. Eu poderia ter sido pressionado pelo ódio em minhas argumentações. Faltava algum complemento que me levasse à compreensão dessa fúria que desorienta, enfeza, torna-o violento e até mesmo leva o indivíduo a se divertir com esta postura urgente e raivosa de vômito do ódio individual. O ódio não é mais só uma postura política, mas uma demonstração de uso da energia vital. Na impossibilidade de amar, de estar feliz por compartilhar o mundo ao lado do outro, pois, com a perda da conexão do ordenamento social, coube ao homem atual “odiar” para afirmar que existe.

Mas temos de reconhecer que só o ódio é insuficiente para validar a nossa presença no mundo. O ódio não é um sentimento destinado a ordenar o prazer de existir. O prazer de existir está no acesso aos bens da natureza, na produção de bens econômicos, no usufruto dos equipamentos públicos e dos arranjos de convivência social. A questão não é odiar, mas participar para que a política assuma a sua funcionalidade: trabalhar pela coisa pública e não pelos interesses partidários e garantia da amamentação de figuras públicas. Na afoiteza de avançar sobre o oponente com mecanismos autoritários, o ódio passa a gerar conflitos e crimes no seio da sociedade. Os resultados só poderão ser positivos se a política correr pelo caminho inverso. Se a ação política lança mão de mecanismos de participação, onde todos tenham o direito de serem incluídos na construção da razão (ver Popper), abre-se a possibilidade de convivência cordata, harmoniosa, todos podem festejar e conviver juntos.

O indivíduo não tem mais com que se ocupar para gastar a energia corporal – guerras, trabalho braçal, esportes que exijam esforço físico − e, então, passa a se divertir em desestruturar a sociedade. Poderíamos dizer que o indivíduo passou a ser inútil, pois só há utilidade em existir quando validamos a existência com o trabalho destinado à criação de espaços onde possamos nos sentir ajustados. O que assistimos são indivíduos desestruturando a compreensão das questões político-sociais e, quando não é efetiva a sua ação, monta acampamento diante do trânsito daqueles que se mantiveram íntegros no posicionamento de resistência às propostas autoritárias. Esse que se posta diante do trânsito não está defendendo a si mesmo. No afã de pôr a vida para existir, com ação e movimento em defesa de objetivos escusos, passa a ser o predador de indivíduos de sua própria nacionalidade, de sua própria comunidade e até da própria família, sem saber que está alimentando interesses de grupos obscuros, de difícil visibilidade.

Ao se encontrarem envenenados, os indivíduos passam a hostilizar as classes sociais desfavorecidas, culpando-as de quietismo, preguiça e desleixo, responsabilizando-as por se encontrarem na queda. Fica fácil a responsabilização dos pobres pela própria pobreza para limpar a culpa dos gestores pela inoperância. Inventam que defendem processos democráticos com tutela militar, inventam inimigos, disseminam até mortes fictícias para os líderes políticos que se opõem às suas teorias aterrorizantes, já que suas ações foram insuficientes para arredá-los do seu caminho. A morte do oponente se torna o último artifício para os envenenados. Têm consciência de que estão na contramão da legalidade e − como se fossem meninos birrentos − não tiram o pé da lama, se a ela se adaptou. Não aceitam ser contrariados em seus pensamentos e ainda criam terminologia para defenestrar os oponentes. Os envenenados são zumbis que ficam encarregados das descargas de mentiras de seus líderes obscuros. Alguns zumbis desfrutam do conforto de suas propriedades enquanto defendem a eliminação dos desfavorecidos. E a cantilena, para eles, deve ser validada a revelia de todo conhecimento que o Homem construiu com trabalho e batalhas em sua longa caminhada pela História para existência da Civilização.

As conexões de Kurosawa

O complemento que me faltava para compreensão desse processo de envenenamento social veio do filme Rashômon (lançado em 1950 e que levou o Oscar de filme estrangeiro de 1952), de Akira Kurosawa. Além de propor muitas outras questões pertinentes para debate do desconforto político/existencial desse tempo de caos administrativo, o filme serve de alerta para o clima de descrença com o processo político ao mostrar que fica insuportável confiar nos resultados das ações humanas quando elas fracassam (em todas as frentes) no atendimento dos anseios da sociedade. Em consequência, ao ficar sem atendimento, a sociedade também deteriora a forma de escolha e de defesa dos seus representantes. Pela voz de seus personagens, Kurosawa, ao abordar a descrença do homem com os desarranjos de seu tempo, sobretudo com a violência, enfatiza que, “se você é bonzinho, não pode sobreviver”, e, de forma ainda mais aterrorizante, que até “o demônio (acaba) fugindo da ferocidade do homem”. Podemos dizer o mesmo do quadro de descrença que ocorre nesses momentos de franca deterioração dos resultados do trabalho dos políticos e de seus gestores.

Diante dessa impossibilidade de acreditar que possam ser beneficiados pelas políticas públicas, tornou-se factível para os indivíduos intimidar e repudiar os opositores, renegando os atos humanos praticados tanto no passado quanto no presente e no futuro. E, julgando insuficiente essa conjectura, inventam situações que os opositores – hipoteticamente − poderão adotar para prejudicar a Nação. O homem passa a desacreditar no futuro da humanidade, tornando-se ele mesmo um ser enfurecido capaz de se envolver em crimes os mais hediondos. Extingue-se a crença que o ordenamento do processo político, pela democracia, possa ser favorável à nacionalidade. O envenenamento mata a confiança do indivíduo na política e transforma-o num depressivo social. Precisa haver esforços para reversão nessa compreensão, com grande estímulo à prática da alteridade – onde os cidadãos possam conviver com trocas de divergências. Isoladas em suas casas e em redes sociais (como Robinson Crusoé), cada pessoa se vê dona da razão disposta a eliminar o outro. Uma Civilização se constrói e se mantém viva através do choque de divergências e com escolhas que atendam e tranquilizem todos.

Ainda que a informática não fosse no seu tempo fator de formação do comportamento do homem, o cineasta Akira Kurosawa alcançou ser visionário na abordagem dessa perda de conexão dos indivíduos com as questões afirmativas da Humanidade. Por ser um crítico das consequências do pós-guerra para o mundo, que resultaram em deterioração da qualidade de vida e das razões para se ter esperança no futuro, quatro de seus filmes abordam os impactos dessas questões sobre as ações humanas. O filme Viver (1950) trata da perda da conexão do serviço público para atender as necessidades da sociedade. O filme Homem mau dorme bem (1960) questiona, impiedosamente, as consequências da corrupção. O filme O barba ruiva (1965) trata da desconexão da elite com os problemas das classes menos favorecidas, que ficam sem atendimento dos serviços públicos essenciais, mostrando a necessidade de o homem se reaproximar da realidade para compreender a importância do próprio trabalho; e, conforme mencionado anteriormente, o filme Rashômon, ou Às Portas do Inferno (título em português que deixou de ser adotado, pois rashômon virou expressão para definir a dificuldade de verificar a verdade de um fato).

Certamente, outros títulos de Kurosawa, de forma direta ou não, possam remeter a essa desconexão política com os arranjos sociais, como é o caso de Dersu Uzala (1975), que trata do ajuste da vida humana à natureza, ensinando que essa interação apresenta ao homem o sentimento de pertencer ao Planeta.

Julgamos oportuna a inclusão de um parágrafo para enfatizar que não fazemos filmes, poesia, artigos e reportagens só por divertimento, nem lemos poemas ou assistimos filmes só para ocupação lúdica, pois a obra de arte traz iluminações para que possamos despertar em nós o sentimento de validade da vida. Na arte, encontramos sinais que nos levam à compreensão de situações que muitas vezes nos assolam de forma tortuosa. O artista que se deixa envenenar pela deterioração política, assim participando do processo obscuro, enfraquece a própria obra e invalida a possibilidade de poder estar presente no processo crítico. Inclui-se no processo de desvanecimento das boas relações entre os indivíduos, com prejuízo até para a saúde das amizades.

Assustador ter à nossa frente a leitura que Kurosawa faz da corrupção no filme noir japonês Homem mau dorme bem. Aquele que trabalha na política só para si e seu grupo torna-se corrupto, deteriora não só o orçamento público, mas perde o pudor do próprio ato de existir, destruindo (ou eliminando a família) e pondo-se à disposição dos líderes venais, fazendo genuflexão diante deles como se estivessem incorporados de santidade. A corrupção vicia e alicia. Coloca a sociedade em conflito e, enquanto os indivíduos se odeiam por não compreender as razões do desordenamento das questões de Estado, a elite e seus representantes ficam livres para agir conforme seus interesses. Passam a boiada e vão dormir o sono como se fossem os justos.

Quanto ao filme Rashômon, nele Kurosawa nos mostra que a interpretação de um fato é montada de acordo com o interesse de cada parte envolvida − o que monta uma obscura verdade, já que cada um apresenta só o ângulo que lhe favoreça. E muitas vezes incide sombras sobre a verdade que o incrimine (sombras estas que podem conter sigilo de cem anos). A interpretação se agrava com a intimidação da parte que se vale da maldade e da mentira para validar seu posicionamento e justificar sua ação. O indivíduo que vai se adaptando a esse canal de interpretação, torna-se uma espécie de caranguejo, que só consegue viver no lamaçal e acha que não viverá se optar por outras possibilidades de ver a realidade e nela fazer-se presente. O indivíduo vira um zumbi, pois passa a existir sem independência, pois movido pelos cordéis manipulados pelos seus mandatários.

Pelos seus personagens, Kurosawa (há mais de setenta anos) profetizava esse sentimento de desconforto que leva as pessoas a não se compreenderem e a passarem a se hostilizar. “Não entendo nada. Não consigo entender.” Diante dessa incompreensão, os envenenados passam a ver todos à sua volta como bandidos, sem reconhecerem que foram forjados pelos seus líderes para serem instrumentos de eliminação de seus opositores. “E os bandidos caem sobre nós todas as noites.” Mesmo repletos de inconformismo, não podemos validar mentiras. Quem assina o laudo da mentira torna-se cúmplice daquele que dela se beneficia.

Temos de nos manter atentos de onde vem o veneno autoritário para dele nos imunizarmos e dele nos vermos livres. Estarmos atentos para o conteúdo das informações, pois só monta a mentira aquele que tem interesse em tirar vantagens ilícitas dela. Se tivermos de nos expormos, mantermo-nos alertas contra os predadores e os envenenadores. A inoperância e a subserviência, que é o que esperam de nós, deixam-nos expostos à derrota. Não há nenhuma atitude revolucionária (que é a ação de eliminar o desfavorecimento social) onde há gasto de energia para intimidar ou para torturar e provocar eliminação. Nesse caso, atuam apenas os interesses obscuros do elitismo criminoso (que não quer se desgrudar de suas benesses). O que ficou delimitado como Democracia é a garantia da permanência do processo crítico, que nos mantém vivos e livres e nos incentiva a promover realizações que favoreçam a todos. A depredação não traz lucro ao que paga pela quebradeira, ao que se omitiu para que ela ocorresse, nem ao que se vendeu para levá-la a afeito. Não podemos nos permitir sermos cegados pelo envenenamento para depredarmos os recursos de manter viva a democracia.

RETRATO, poema de Antonio Machado

Traduzi para meu consumo o poema "Retrato", do espanhol Antonio Machado. Trata-se de um dos poetas de minha predileção, assim como...