Soares Feitosa, Poeta:
Pois não será pura sabedoria essa dedicação sem perguntas, essa fé gratuita? Em que horizontes buscarão tais santas e santos — canonizados ou não — a força de sua humilde retidão? Como gostaria de sabê-lo, ou melhor, de senti-lo. Talvez pudesse superar essa oscilação angustiante: euforia pelo ideal de justiça, derrota pela injustiça flagrante. E culpa, culpa, culpa. Eu, neurótico, preciso recorrer à vossa palavra poética para desculpar-me. Porque nela encontro um sentimento maior do mundo. Ou à palavra poética de Moacyr Félix: "Sabemos do anzol apenas o que vai até o fácil branco e o facílimo vermelho de sua boiazinha de superfície; o que o chumbo leva ao fundo, o mar, o peixe, a vida do peixe, o nosso desejo preso às giratórias mortes do peixe, o segredo central da pesca, isto nunca sabemos, porque no mar do Mar nada sabemos até o fim: somos sempre o início, como a vaga é sempre o início de outra vaga, como a vaga que, quando isolada, é apenas um temporário espaço de água e sal, jogo de químicas e retortas, sem nenhum movimento capaz de ligar-nos à história do mar, ao seu princípio e ao seu fim."
De vez em quando a barra pesa, você sabe. Daí que leio o Salomão Souza com o seu "Recorte sobre a poesia brasileira contemporânea" e uma vereda se abre. Fina percepção de um movimento que transcende a análise de uma escola ou "igrejinha" e/ou sua comparação com outras. Nem sequer é crítica literária, (por um momento, só por um momento resvala para um quase revanchismo ao referir um "fundamentalismo" e mencionar a Alexei Bueno e Espinheira Filho) mas percepção fenomenológica. Não há demérito para ninguém. Com seu olhar panorâmico faz observações interessantíssimas.
Salomão Sousa levanta-me o astral ao fazer-me perceber que esse vazio na boca do estômago é compartilhado. Mas, claro que é compartilhado, que é sofrido por todos, sem exceção, mas não necessariamente apreendido, detectado e finalmente expresso, por todos. Apenas as "antenas" da humanidade, pensadores, poetas e escritores, por dever de ofício. Assim mesmo a percepção completa, analítica, é posterior. O fato é que a literatura (dentre outras antenas) emite sinais, e os emitiu antes da primeira grande guerra, e entre esta e a segunda, por exemplo.
Pois Salomão Sousa detecta — como uma forte tendência, capaz de caracterizar uma originalidade expressiva — no panorama da poesia brasileira contemporânea a complexa e paradoxal expressão do vazio. Complexa como se pode apreender da elaboração dos versos dos poetas citados. Paradoxal, porque longe de uma poética destituída de brilho, aliás, muito pelo contrário.
Referindo-se a tal tendência, escreveu Salomão: "... atrai-me na atual poesia de pós-vanguarda essa liberdade de não querer nada — nem engajamento, nem bordado de um texto estruturado numa forma definida, nem a estrutura sólida dos objetos da natureza e da cultura.". Outras características são assinaladas, como agressividade, densidade, sonoridade, sugestão, interioridade, condensação, corte, que não são em absoluto estranhas ao mundo da poesia, razão porque separei, a meu juízo, a instantaneidade, a desconstrução de forma e conteúdo e a ausência de significado explícito como vetores mais importantes dessa tendência a que se refere Salomão. Os três vetores apontariam para um "esvaziamento" semântico que mais corresponde a uma sugestão, a uma pergunta, do que a uma proposta, ou a uma resposta, já que estas, até mesmo pela ausência cada vez mais pronunciada do "eu" no mundo real, deixaram de ter sentido nesse "mundo em cacos" "em que o eu não mais ocupa a figura de centro". A viagem se interioriza. A metalinguagem faz-se presente não para explicar fórmulas, mas para corroborar na pergunta, ou realçar a perplexidade: e agora, em que nos tornamos?
A palavra perdeu o seu sentido habitual. Perdeu o seu sujeito. Está muda, vazia. Está a espera de uma ressignificação. Ou sugere-a num novo sentido não explícito, para nova fruição.
Não cabe perguntar se essa tendência e seus poetas têm ou não razão. O fato, para mim, é que seus versos refletem uma concepção poética que parece "escapar" da encruzilhada em que se mete o mundo, entre o ideal gasto, esfarrapado, e o real fragmentado e anômico, apesar das marcas do desassossego. Como acentua Salomão, referindo-se aos versos de Iacyr Anderson Freitas, "Então, é uma vasta procura e uma vasta dúvida.".
Enquanto isso, Salomão fotografa o mundo com a mesma "neutralidade" dos santos e santas em êxtase: olha, tem coragem, mira o teu rosto. Veja como é belo. Veja como é odioso. Veja como rimos e como choramos. Veja como somos humildes e quanto somos pretensiosos. Veja como a saga humana tem de fantástico o que tem a Arte. Veja como nossa história poderá nos salvar no Século Cem, de Ésquilo!
Mas, às vezes, às vezes, a barra pesa.