14 de fevereiro de 2020


Por que ser contra?
O pulgão é a favor do broto.
A abelha é a favor do mel.
A mosca, a favor do fruto.
Ser a favor de uma camisa,
de onde pisar, de uma porta
por onde entrar.
Tão triste ser a favor
do direito de chutar,
de adulterar,
designar com um x
para extinguir.
Indigno.

3 de fevereiro de 2020

Um filme para estimular o heroísmo

Por que o olhar de Lucky é duro e a sua queda não pode ser em razão de um problema físico? Por que sua marcha é rija, com total confiança no destino? É sortudo só por estar vivo? Possivelmente o cineasta John Carroll Lynch nem tivesse em mente – no momento de sua construção - a dimensão desse personagem, ao qual podemos atribuir vários significados ao analisá-lo. As fábulas tem vida própria, pois surgem da necessidade de seus autores interpretarem estados psicológicos ou de articulações de poder de um momento histórico. As fábulas são raras, mas existem para elucidar os enigmas da realidade, que muitas vezes se disfarçam para nos arregimentar ou destroçar. A História mostra a real ocorrência dos fatos. As fábulas, os mitos e as metáforas antecipam a interpretação dos fatos – venham eles a ocorrer ou não. 

Lucky, personagem principal do filme que leva seu nome, é um cara sortudo. Coube-lhe ser cozinheiro na guerra, escapando de comparecer à frente da batalha, e acresce-se a essa sorte o fato de o navio em que servia sair ileso das batalhas. Mas essa é história do passado, pois, quando o filme começa, ele está com noventa anos, fazendo cem exercícios de yoga a cada manhã para não se debilitar fisicamente. No entanto, ele resiste heroico e disciplinado numa comunidade isolada composta por indivíduos marginalizados, onde os cactos bicentenários também resistem na paisagem árida e onde um cágado foge do aprisionamento e circula livre.
Nenhum filme me deixou tão impressionado nos últimos tempos quanto esse, nem mesmo Parasita, que concorre à edição do Oscar em 2020, que trata da situação de uma família desempregada (marginalizada do processo econômico) que se infiltra na residência de uma família de alta concentração de renda, ou A Partida, que traz a temática da redescoberta do valor da vida a partir da intimidade com a morte.

Lucky contem temática inversa do filme A Partida - mostra o esforço heroico do anti-herói para não deixar a vida desgarrar-se com a proximidade da morte, ainda que mantenha a constante consciência do absurdo da existência (Você não é nada! As palavras do roteiro podem remeter a Camus, Sartre ou Melville, só que aqui sequer existe o absurdo da baleia para enfrentamento, pelo menos em seu estado físico, arpoável. Onde está o inimigo? Em épocas de sociedades anônimas -, não sabemos qual figura nos deixa fora da inserção nos processos socioeconômicos. Achamos que é o político, mas quem alimenta o político? Até o marginalizado - o próprio prejudicado ou futura vítima do processo - vai lá e engorda Moby Dick com apoio cego, sem consciência que vai sendo engolido aos poucos até a extremada armadilha final.)

Como no filme Paris Texas, Harry Deam Stanton circula por paisagens desérticas. Ao contrário do tema de Wim Wenders, onde a busca era pela afetividade perdida, em Lucky – talvez escrito para homenagear a trajetória desse grande ator -, não interessa mais a afetividade, talvez integrar-se na paisagem derruída que (por sorte?) lhe restou. E essa é a grande problemática enfrentada pelo homem de épocas extremadas. A arma é a perda de afetividade, bem como o destroçamento dos espaços. O muro é perda de afetividade. A necropolítica, nem se fala. E Lucky resiste, pois ser indiferente também é concordar com a engrenagem da perda da afetividade. Toda vez que digo que 'não dá tempo para acontecer" ou que "não vai acontecer", dou a minha anuência, pois a neutralidade também é combustível para que o extremismo avance mais rápido com as suas armas. A concordância de Lucky permitiria que a arma fosse retirada da parede. Por isso, ele não ri, não se permite dar passos em falso. Se leva uma queda, indaga, à exaustão, as razões dessa queda.

O ideal da crítica de cinema seria a geração de outras imagens para montagem do teor da crítica, mas só a palavra monta processos de interpretação. Por mais que a imagem mostre o real, a argumentação é construída com discurso. O filme Lucky – pelo menos na minha interpretação - é uma fábula que estimula a construção crítica sobre as relações dos indivíduos frente às engrenagens da realidade atual. Como encarar a velhice, a solidão, a perda do Paraíso da sexualidade e da inserção econômica? E, sobretudo, como harmonizar-se no processo de divergências de compreensão do destino, sobretudo do processo da necropolítica, se a administração decide deixar comunidades inteiras à própria sorte (e, em seguida à deterioração, instala o sniper)?

Podemos até conferir que essa não seja a intenção inicial ou da gênese do filme, mas ele acende um alerta não só para o apartado. Adverte-nos, ou pelo menos devemos ler isso na interpretação do filme, já que interpretar é dar significado e não só “ver” - como a próprio discurso do Realismo do filme nos propõe -, adverte que o marginalizado deve continuar vivendo com heroísmo, sem confessar o medo fora do próprio círculo de confiança e de compreensão da marginalização, resistindo sem mostrar fragilidade e nunca perder o poder de indignação, nem que seja xingando na direção da engrenagem responsável pela construção da exclusão (pois a engrenagem está atrás de uma porta, de um muro, dentro de um gabinete), e prosseguir a marcha com passos rijos. Confessar medo ou desistência, na vigência da administração extremada, é propor ao que está no comando, no controle da mira, que avence na eliminação. Se cair, pois nem sempre conhece o que está sendo articulado à sua revelia, deve negar e demonstrar que a queda não foi causada por sua ação.

Aqui ainda cabe uma divagação do intérprete. Só argumentamos com aquilo que sabemos ou desejamos. O intérprete com interesses em ocupação de espaço político ou ampliação de espaço de ocupação, verá na comunidade do filme (ou de uma cidade brasileira) um local para instalação do sniper, pois ali estão reunidas ótimas vítimas a serem eliminadas. Até a interpretação passou a ser feita com a ótica dos interesses do intérprete. Só interpreto com aquilo que aprendi ou que atende aos meus interesses. Aquele que viveu eternamente dentro da religiosidade, dirá que os personagens estão aprisionados em determinada realidade por falta de Deus. Aquele que deseja espaço para ampliação do poder econômico contratará o atirador para desocupação do território a ser ocupado. A Psicologia Social compreenderá que o fechamento das fronteiras está destruindo os indivíduos.

Ainda voltaremos a repetir: cada expectador dará o significado a essas metáforas com os seus interesses ou com as ferramentas interpretativas que armazenou no percurso do processo de formação. Prefiro compreender que aquele que foi marginalizado contra seu interesse (cágado) tem de ser libertado e indenizado. Julgo que aqueles que posicionam o sniper diante das comunidades marginalizadas são uns “c.zões” covardes.

Buscamos filmes que atendam nossos interesses. Uns buscam aqueles com temática que correspondam à própria religiosidade; outros, que estimulem a sexualidade ou a violência. Prefiro filmes como Lucky, que trazem grandes momentos de silêncio para eu preencher com a imaginação. Ou incluam metáforas que eu possa dilatar com a interpretação. E esse filme é um prato cheio de metáforas poéticas. Se mato um rouxinol, silencio o mundo. Se aprisiono um cágado, impeço-o de buscar - em liberdade - o que desejava. Posso adotar um rouxinol, mas não um grilo, pois o grilo é alimento para aves e peixes. E o telefone vermelho? Quem está do outro lado para responder aos questionamentos de Lucky, estimulando-o a compreender a existência? O dicionário sobre o púlpito? A realidade explicada, compreendida, pode ser mais útil do que a realidade aceita de forma dogmática? As divergências aceitas geram harmonia, mas eliminam os riscos da instauração de polaridades e agressividades?

RETRATO, poema de Antonio Machado

Traduzi para meu consumo o poema "Retrato", do espanhol Antonio Machado. Trata-se de um dos poetas de minha predileção, assim como...