Não basta uma safra, senão há a esterilidade. A poesia é meu território, e a cada dia colho grãos em seus campos. (Linoliogravura do fundo: Beto Nascimento
10 de março de 2024
RETRATO, poema de Antonio Machado
7 de março de 2024
Passeio com Eurídice na ausência de Luíza
Aqui estamos afundados na dengue.
Para deixarmos o corpo fora
esticamo-nos dentro do olho do monstro.
Mas temos sol, temos outros astros,
e divertimentos de enchentes.
Liguemos os véus do tempo
e cumpramos os gestos de reiniciar o reino,
está velho o norte em que vamos.
Cremos. A noite não passa
de um desarme dos remos.
Temos sobre o leito o tesouro de esmeraldas
quando nos pomos a navegar
e não é de roubo nossas lâmpadas.
Implica quase sempre tirarmos as travas.
Enquanto Luísa se ausenta,
com Eurídice passemos a tormenta.
Construímos o leito
para que as palavras se amem.
Salgado Maranhão, Homero.
Cabem em nosso corpo o vento
e os desejos de Eurídice.
Talvez escaravelhos nos dorsos,
se prazeres de esmeraldas sabemos.
Não embarcamos serpentes.
18 de fevereiro de 2024
Zona de interesse
O olhar indiferente do alto da sacadanão extirpa a praga a germinar na calçada,nem afasta a mão que esparge a água de lhe dar vigor.
13 de fevereiro de 2024
Espergésia
Cesar Vallejo
Eu nasci num
dia
que Deus esteve
enfermo.
Todos sabem que
vivo,
que sou mau; e
não sabem
de Dezembro e
desse Janeiro.
Pois eu nasci
num dia
que Deus esteve
enfermo.
Há um vazio
em meu ar
metafísico
que ninguém vai
apalpar:
o claustro do
silêncio
que anunciou a
flor de fogo.
Eu nasci num
dia
que Deus esteve
enfermo
Irmão, escuta,
escuta…
Bem. E que eu
não parta
sem levar
dezembros,
sem deixar
janeiros.
Pois eu nasci
num dia
que Deus esteve
enfermo.
Todos sabem que vivo,
que mastigo... E não sabem
porque em meu verso tagarelam,
oscuro insosso
de féretro,
espanados ventos
desenroscados da Esfinge
bisbilhoteira do Deserto.
Todos sabem… E
não sabem
que a luz é
tísica,
e a sombra
gorda…
E não sabem que
o Mistério sintetiza…
que ele é a
corcunda
musical e triste
que a distância denuncia
a passagem
meridiana das fronteiras para as Fronteiras.
Eu nasci num
dia
que Deus esteve
enfermo,
grave.
Tradução: Salomão Sousa
10 de fevereiro de 2024
Antonio Brasileiro
26 de janeiro de 2024
Email de Luiz Paulo Santana a Soares Feitosa
Soares Feitosa, Poeta:
Pois não será pura sabedoria essa dedicação sem perguntas, essa fé gratuita? Em que horizontes buscarão tais santas e santos — canonizados ou não — a força de sua humilde retidão? Como gostaria de sabê-lo, ou melhor, de senti-lo. Talvez pudesse superar essa oscilação angustiante: euforia pelo ideal de justiça, derrota pela injustiça flagrante. E culpa, culpa, culpa. Eu, neurótico, preciso recorrer à vossa palavra poética para desculpar-me. Porque nela encontro um sentimento maior do mundo. Ou à palavra poética de Moacyr Félix: "Sabemos do anzol apenas o que vai até o fácil branco e o facílimo vermelho de sua boiazinha de superfície; o que o chumbo leva ao fundo, o mar, o peixe, a vida do peixe, o nosso desejo preso às giratórias mortes do peixe, o segredo central da pesca, isto nunca sabemos, porque no mar do Mar nada sabemos até o fim: somos sempre o início, como a vaga é sempre o início de outra vaga, como a vaga que, quando isolada, é apenas um temporário espaço de água e sal, jogo de químicas e retortas, sem nenhum movimento capaz de ligar-nos à história do mar, ao seu princípio e ao seu fim."
De vez em quando a barra pesa, você sabe. Daí que leio o Salomão Souza com o seu "Recorte sobre a poesia brasileira contemporânea" e uma vereda se abre. Fina percepção de um movimento que transcende a análise de uma escola ou "igrejinha" e/ou sua comparação com outras. Nem sequer é crítica literária, (por um momento, só por um momento resvala para um quase revanchismo ao referir um "fundamentalismo" e mencionar a Alexei Bueno e Espinheira Filho) mas percepção fenomenológica. Não há demérito para ninguém. Com seu olhar panorâmico faz observações interessantíssimas.
Salomão Sousa levanta-me o astral ao fazer-me perceber que esse vazio na boca do estômago é compartilhado. Mas, claro que é compartilhado, que é sofrido por todos, sem exceção, mas não necessariamente apreendido, detectado e finalmente expresso, por todos. Apenas as "antenas" da humanidade, pensadores, poetas e escritores, por dever de ofício. Assim mesmo a percepção completa, analítica, é posterior. O fato é que a literatura (dentre outras antenas) emite sinais, e os emitiu antes da primeira grande guerra, e entre esta e a segunda, por exemplo.
Pois Salomão Sousa detecta — como uma forte tendência, capaz de caracterizar uma originalidade expressiva — no panorama da poesia brasileira contemporânea a complexa e paradoxal expressão do vazio. Complexa como se pode apreender da elaboração dos versos dos poetas citados. Paradoxal, porque longe de uma poética destituída de brilho, aliás, muito pelo contrário.
Referindo-se a tal tendência, escreveu Salomão: "... atrai-me na atual poesia de pós-vanguarda essa liberdade de não querer nada — nem engajamento, nem bordado de um texto estruturado numa forma definida, nem a estrutura sólida dos objetos da natureza e da cultura.". Outras características são assinaladas, como agressividade, densidade, sonoridade, sugestão, interioridade, condensação, corte, que não são em absoluto estranhas ao mundo da poesia, razão porque separei, a meu juízo, a instantaneidade, a desconstrução de forma e conteúdo e a ausência de significado explícito como vetores mais importantes dessa tendência a que se refere Salomão. Os três vetores apontariam para um "esvaziamento" semântico que mais corresponde a uma sugestão, a uma pergunta, do que a uma proposta, ou a uma resposta, já que estas, até mesmo pela ausência cada vez mais pronunciada do "eu" no mundo real, deixaram de ter sentido nesse "mundo em cacos" "em que o eu não mais ocupa a figura de centro". A viagem se interioriza. A metalinguagem faz-se presente não para explicar fórmulas, mas para corroborar na pergunta, ou realçar a perplexidade: e agora, em que nos tornamos?
A palavra perdeu o seu sentido habitual. Perdeu o seu sujeito. Está muda, vazia. Está a espera de uma ressignificação. Ou sugere-a num novo sentido não explícito, para nova fruição.
Não cabe perguntar se essa tendência e seus poetas têm ou não razão. O fato, para mim, é que seus versos refletem uma concepção poética que parece "escapar" da encruzilhada em que se mete o mundo, entre o ideal gasto, esfarrapado, e o real fragmentado e anômico, apesar das marcas do desassossego. Como acentua Salomão, referindo-se aos versos de Iacyr Anderson Freitas, "Então, é uma vasta procura e uma vasta dúvida.".
Enquanto isso, Salomão fotografa o mundo com a mesma "neutralidade" dos santos e santas em êxtase: olha, tem coragem, mira o teu rosto. Veja como é belo. Veja como é odioso. Veja como rimos e como choramos. Veja como somos humildes e quanto somos pretensiosos. Veja como a saga humana tem de fantástico o que tem a Arte. Veja como nossa história poderá nos salvar no Século Cem, de Ésquilo!
Mas, às vezes, às vezes, a barra pesa.
RETRATO, poema de Antonio Machado
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