26 de fevereiro de 2022

Poema

Antes fosse a solidão, essa que não deseja
ruído, rugido, fricção de esteiras
e martelar em estacas a fixar arames
Antes chegasse o pelotão
com a incumbência de plantar velames

Tem de partir tão rápido quem procura
a reserva de cômodos e de quintais
onde secar lençóis e edredons
e continuará sem endereço
Tem de ter início um novo povoamento,
reserva de adereços da festa pátria

Antes não fosse o abandono,
esse que não arrancasse as folhas
e que não apresentasse instrução
para que as castanheiras virem carvão
Alguém deseja compreender
o que se obtém com umas braças de terra
e nem as palavras instruem
como se desfazer das crianças mortas

A bomba traz o decalque de instrução
Derruba dez andares e não sobrevivem
homens animais percevejos
numa determinada adjacência
E completa com o certificado de garantia
se não explodir há direito de reposição

Antes não houvesse a reposição dos loucos

6 de fevereiro de 2022

O que é um fascista?

Este texto integra o livro Bifurcações memória, resistência e leitura.

O que é um fascista? Quando é que acontece a construção de uma sociedade fascista? Há a prática criminosa de injúria social quando uma parcela da sociedade é acusada de possuir “baixa cognição” para negar-lhe participação no debate político? Tenho recebido amiúde esses questionamentos de pessoas que desejam se esclarecer sobre essas questões.

Alguns eventos sugerem a necessidade de análise da postura de segmentos da política e do comportamento da sociedade brasileira no início desta terceira década do Século XXI quanto a reivindicações de instauração de limites obscuros à Democracia. Vem se impondo a necessidade de questionar se está em andamento a construção de uma sociedade totalitária, pois é inegável que há uma voluntariedade autoritária ativa.

Aqui não se analisa o afã da elite brasileira, conforme se pode apurar da trajetória republicana, pela busca contínua pela tutela da democracia pelos militares. Aí já seria outro questionamento: há democracia tutelada, com imobilização da participação política de segmentos da sociedade?

No entanto, é possível notar que há preocupação crescente de parcela da população, sobretudo por indivíduos que não se encontram na elite, em buscar resposta para questões políticas para compreender o que significa ser “fascista”. E é necessário ter sempre presente que só com argumentação há enfrentamento para que a democracia – que garante a cidadania (direito de participação política e de acesso ao emprego, à educação e aos bens) –, não sofra invasões e esmorecimento.

Tal como o nazismo e o stalinismo, o fascismo foi um segmento do totalitarismo, que causou sérios danos à Itália, com reflexos na Europa e no resto do mundo. Por seu aspecto raivoso, com um líder de ufanismo popular e exibicionismo sobre a motocicleta, o termo passou a ser empregado para qualificar governos autoritários e totalitários centrados na figura do líder, com abolição dos demais poderes e que se voltam – com ódio – contra os opositores. Os governos totalitários, após devidamente instaurados, sempre eliminam fisicamente seus opositores (veja Ruanda, a Alemanha nazista, Stalin e Mao).

Para implantação de um governo de exceção, há o afã em tentar a eliminação dos Poderes Judiciário e/ou Legislativo sob o argumento de que eles não contribuem para o andamento da democracia. Há predomínio da força militar, que se investe no direito de julgar e executar civis. No caso brasileiro, foi enviado parecer da Advocacia-Geral da União ao Supremo Tribunal Federal solicitando permissão para que civis sejam julgados pela Justiça Militar e, ainda, a elaboração de parecer pela Funarte com conteúdo religioso e de afronta às manifestações “antifascistas” para negar recursos para projetos culturais.

Se não bastasse a intimidação da imprensa livre, com ataques físicos a jornalistas, há a desfaçatez de apresentação de proposta legislativa visando legitimar a prática de divulgação de fake news para manipulação da sociedade através da mentira. Há, ainda, adoção de terminologia para desqualificar os opositores, alegando que uma camada da sociedade, portadora de “baixa cognição”, não merece manifestar-se politicamente.

Não pode passar despercebido o aparelhamento do Estado com a presença de militares, sejam na ocupação de postos chaves do Governo (com elevadas sinecuras), ou na concessão de benefícios, tais como acumulação de vencimentos e empréstimos a baixo custo para aquisição de casa própria, para atraí-los como guardiães do chefe do Poder Executivo.

Em 1944, quando estava no auge o governo de Mussolini, de onde surgiu o termo “fascismo”, George Orwell escreveu o pequeno ensaio “O que é fascismo?”. O autor registra que nos Estados Unidos, naquela época, foi realizada uma pesquisa com 100 pessoas para responder a pergunta. Para demonstrar a falta de envolvimento das pessoas − em qualquer época e em qualquer país, por mais democrático que ele seja e com compreensão dos mecanismos da política −, chegou a ser apresentada resposta definindo o fascismo como “pura democracia”. Orwell reconhece que, na época em que escreveu o artigo, ainda não estava cunhada definição clara e popularmente aceita para a palavra e sugeria que ela fosse usada “com certo grau de prudência”. E complementava: “não degradá-la ao nível de xingamento”.

Desde que Mussolini foi dependurado nas traves de um posto de combustível e depois jogado numa vala ao lado da mulher e que Hitler desapareceu no monturo (locais em que é descartada a maioria das figuras totalitárias), o significado de fascismo passou a ser esmiuçado por estudiosos, sobretudo por Hannah Arendt em seu definitivo livro As origens do totalitarismo. Portanto, o fascismo, tal como o nazismo e o stalinismo, é uma corrente do totalitarismo, na qual o governo fica “totalmente” centrado na vontade do governante. O líder, além de linguagem de xingamento e de ameaças de desmobilização política do país pela intimidação, define aparato militar para se proteger e eliminar ou silenciar do seio da sociedade todas as correntes opositoras, além de permitir que a população tome conhecimento apenas daquilo que interessa ao establishment e vá manter o líder à força no Poder.

No totalitarismo, o líder (mito) exerce todos os poderes, com domínio ou abolição do Legislativo e do Judiciário, bem como instala departamento de comunicação para enganar a população, deixando o povo sem conhecimento da realidade política. Basta ver o que vem registrado nos preâmbulos dos atos institucionais da ditadura brasileira de 1964. Os chefes militares, autoritariamente, afirmam que resolveram manter a Constituição de 1946 e as atividades do Congresso Nacional, no entanto, legitima a “revolução” através de atos unilaterais. O próprio ato se acusa como autoritário, pois o Legislativo, que soma a diversidade democrática de uma Nação, é descartado na edição dos atos. No preâmbulo do AI-1, a ditadura já entra de sola afirmando, despudoradamente, que ela mesma cuidará de fazer as leis que ela executará:

Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso.

No preâmbulo do AI-2, a ditadura (mais despudoradamente) se autolegitima e se confessa totalitária ao descartar a discussão do ato com os demais poderes:

b) a revolução investe-se, por isso, no exercício do Poder Constituinte, legitimando-se por si mesma.

Não pode ser negado que só se constrói um Governo totalitário com a vontade de alguns estratos da sociedade, que desejam tirar proveito de um universo administrativo livre de travas judiciais, de sinecuras salariais ou de liberalidades comerciais e industriais. Esses estratos elegem e protegem o líder, que assegurará a execução de suas reivindicações (destruição do meio ambiente, redução de direitos trabalhistas, alta do dólar, pauta conservadora (e daí para frente). Esses estratos não se preocupam com o preço que o país paga por suas benesses, tais como perda de direitos individuais, de direito de manifestações políticas e por reivindicações salariais. Os detentores da produção econômica não correm risco com ações judiciais ou com efeitos inflacionários.

O regime totalitário se dá o direito de invadir as casas, determinar como a sexualidade deve ser praticada, qual religião é oficial, chegando à prisão e eliminação de opositores. Sem se envergonhar, os mantenedores do totalitarismo assegurarão até alguém ser atirado ao monturo que estão trabalhando para garantia da democracia. Os pequenos ditadores mantêm vivo o ditador.

Desde o artigo de George Orwell, vários significados foram sendo incorporados ao conceito de “fascismo”, assumindo-se até como expressão de menosprezo para xingamento dos líderes autoritários ou totalitários, basta ver que tanto governistas quanto situacionistas passaram a repudiar o termo “antifascista”, pois ninguém se enxerga “fascista”.

Quando os três poderes estão em funcionamento pleno, não há totalitarismo (fascismo). No entanto, sob o manto de um discurso de messiânico conservadorismo, há esforço para esvaziar as competências dos poderes Judiciário e Legislativo, dirigindo-lhes críticas para redução da credibilidade de suas ações. O autoritarismo se cobre com os símbolos nacionais para enganar a Democracia. Quando o nome da Democracia é usado em vão, do autoritarismo para o totalitarismo é um passo. Compete à sociedade cerrar a passagem ao líder autoritário para que esse passo não seja avançado.

Cabe uma observação final sobre o que consideramos o aspecto mais terminal das práticas do autoritarismo, aquele que preconiza as consequências mais intimidadoras. Trata-se de estabelecimento de terminologia que desqualifique a parcela da sociedade que se opõe à instauração do regime de exceção.

O filólogo Victor Klemperer, no livro LTI: a linguagem do Terceiro Reich, analisou o uso da linguagem para estabelecimento do nazismo. Para ele, “o nazismo se embrenhou na carne e no sangue das massas por meio de palavras, expressões e frases impostas pela repetição, milhares de vezes, e aceitas inconsciente e mecanicamente”. O jornalista polonês W. L. Tochman, no livro Hoje vamos desenhar a morte, revive o genocídio dos tutsis, em Ruanda, através de entrevista das crianças que sobreviveram após ficar dias escondidos debaixo dos corpos mortos dos pais. As crianças relembram que o som de um crânio ao ser partido por um facão é o mesmo de uma cabeça de repolho ao ser cortada abruptamente ao meio. Ambos livros mostram as terminologias que foram sendo implantadas na Alemanha e em Ruanda para desqualificar raças e etnias e, assim, fossem justificados e executados os genocídios. Suspendi a leitura do livro de Tochman, pois começaram a surgir tremores em meus lábios em razão do descontrole de minhas emoções provocado pelo horror das cenas.

Importante também a análise de Theodor W. Adorno sobre a propaganda fascista a partir da teoria de Freud sobre o narcisismo. No autoritarismo moderno, o narcisismo foi substituído pelo egocentrismo, onde o amor passa a inexistir e a figura ameaçadora passa a se concentrar no próprio indivíduo. No fascismo (leia-se hoje autoritarismo), para Adorno, as técnicas do demagogo e do hipnotizador (leia-se líder autoritário) coincidem com o mecanismo psicológico através do qual os indivíduos são levados a se submeter às regressões que os reduzem a meros membros de um grupo.

Nesse processo, os indivíduos seguem o líder autoritário, que os cega através de manipulações publicitárias. Os seguidores (muitas vezes pagos para montar e disseminar mentiras) se põem apartados, conscientes da própria ruindade (perda da razoabilidade), transferindo para os opositores o fracasso pelos resultados da prática política, chegando a dizer que eles possuem “baixa cognição” (forma de tratamento intolerante contra pobres e opositores) e julgando com direito de puni-los e eliminá-los.

Ao quantificar que os pobres e os integrantes da oposição possuem “baixa cognição”, tentam imputar que os indivíduos das categorias sociais aí inseridas são “idiotas” (ou de qualquer outra qualificação pejorativa, talvez “ratos”, como ocorreu em Ruanda). Sob o manto dessa terminologia erudita – eivada de criminosa injúria social –, alegam que os opositores não merecem ser cidadãos. Objetivam, assim, ação abortiva, de eliminação, de forma a assegurar o domínio de uma elite mesquinha e má, atuante para manter parte da sociedade à margem da economia e do conhecimento. O conhecimento (cognição) eleva a capacidade crítica para participação da vida política e econômica – e o acesso ao conhecimento sempre foi negligenciado (deliberadamente) pela elite.


(*) Salomão Sousa, poeta e funcionário aposentado do serviço público federal após trabalhar por mais de 40 anos na área de assessoramento parlamentar.

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Traduzi para meu consumo o poema "Retrato", do espanhol Antonio Machado. Trata-se de um dos poetas de minha predileção, assim como...