30 de dezembro de 2013

De Luiz Marins da Silva

 
 
 
 
Luiz Martins Da Silva comentou um link que você compartilhou.
Luiz Martins escreveu: "De Jorge Luis Borges -- Two English Poems: http://www-ccs.cs.umass.edu/cris/texts/two-english-poems.html"
 
Two English Poems

                          I
   
   The useless dawn finds me in a deserted street-
      corner; I have outlived the night.
   Nights are proud waves; darkblue topheavy waves
      laden with all the hues of deep spoil, laden with
      things unlikely and desirable.
   Nights have a habit of mysterious gifts and refusals,
      of things half given away, half withheld,
      of joys with a dark hemisphere. Nights act
      that way, I tell you.
   The surge, that night, left me the customary shreds
      and odd ends: some hated friends to chat
      with, music for dreams, and the smoking of
      bitter ashes.  The things my hungry heart
      has no use for.
   The big wave brought you.
   Words, any words, your laughter; and you so lazily
      and incessantly beautiful.  We talked and you
      have forgotten the words.
   The shattering dawn finds me in a deserted street
      of my city.
   Your profile turned away, the sounds that go to
      make your name, the lilt of your laughter:
      these are the illustrious toys you have left me.
   I turn them over in the dawn, I lose them, I find
      them; I tell them to the few stray dogs and
      to the few stray stars of the dawn.
   Your dark rich life ... 
   I must get at you, somehow; I put away those 
      illustrious toys you have left me, I want your
      hidden look, your real smile -- that lonely,
      mocking smile your cool mirror knows.
   
                       II
   
   What can I hold you with?
   I offer you lean streets, desperate sunsets, the
      moon of the jagged suburbs.
   I offer you the bitterness of a man who has looked
      long and long at the lonely moon.
   I offer you my ancestors, my dead men, the ghosts
      that living men have honoured in bronze:
      my father's father killed in the frontier of
      Buenos Aires, two bullets through his lungs,
      bearded and dead, wrapped by his soldiers in
      the hide of a cow; my mother's grandfather
      --just twentyfour-- heading a charge of
      three hundred men in Peru, now ghosts on
      vanished horses.
   I offer you whatever insight my books may hold, 
      whatever manliness or humour my life.
   I offer you the loyalty of a man who has never
      been loyal.
   I offer you that kernel of myself that I have saved,
      somehow --the central heart that deals not
      in words, traffics not with dreams, and is
      untouched by time, by joy, by adversities.
   I offer you the memory of a yellow rose seen at
      sunset, years before you were born.
   I offer you explanations of yourself, theories about
      yourself, authentic and surprising news of 
      yourself.
   I can give you my loneliness, my darkness, the
      hunger of my heart; I am trying to bribe you 
      with uncertainty, with danger, with defeat.
   
   
                     - Jorge Luis Borges (1934)

De Ronaldo Cagiano


 Salomão, sem dúvida, Cântico Negro, de José Régio, é minha eleita, no que espero simbolizar a essência dessa consciência estética que nos sugere um contraponto ao status quo vigente, principalmente na literatura.

Cântico negro
José Régio

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

José Régio
, pseudônimo literário de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde em 1901. Licenciado em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre. Foi um dos fundadores da revista "Presença", e o seu principal animador. Romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico, foi, no entanto, como poeta. que primeiramente se impôs e a mais larga audiência depois atingiu. Com o livro de estréia — "Poemas de Deus e do Diabo" (1925) — apresentou quase todo o elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a consciência da frustração de todo o amor humano, o orgulhoso recurso à solidão, a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante a si mesmos.

De Leo Barbosa

Leo Barbosa: É difícil escolher (escolher um poema predileto), mas o primeiro que me veio à mente foi Tabacaria, do Fernando Pessoa - talvez a escolha seja por demais clichê, mas tá valendo http://www.jornaldepoesia.jor.br/facam08.html

Késia Mota: Tabacaria, com certeza, o melhor poema de todos os tempos!

Tabacaria
 
Fernando Pessoa

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
 

29 de dezembro de 2013

De João Carlos Taveira

Salomão, atendendo a sua solicitação, envio-lhe um poema do Rilke muito propício ao instante: sem título, ele pertence ao livro 

VIDA DE MARIA.
Rilke

 
Minha miséria agora é completa. Algo sem
nome
apoderou-se do meu ser. Imóvel,

como se fora pedra,
o cerne também de pedra.
Apenas uma coisa eu sei:
Cresceste
... cresceste muito
até alcançar a grande dor
que meu coração não pode compreender.
Jazes deitado obliquamente no meu colo
e então, então é impossível de novo
te gerar.

De Cristiana Moura

Salomão Sousa, obrigada pelo convite e atendendo a sua solicitação com muita felicidade envio um poema que amo desde a infância. Motivo de Cecília Meireles sempre me encanta pela delicadeza com que aborda temas universais que acompanham a humanidade como amor, transitoriedade da vida, morte e efemeridade do tempo. Além de possuir uma musicalidade que canta nos nossos ouvidos a sua linguagem altamente feminina, intuitiva e sensorial. Uma poeta e seu poema que amo 

- Motivo - 
Cecília Meireles 

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

Brasigois Felício

você não está fora de foco: penso também que a poesia não deve ser só a anotação ligeira, à moda Leminskyana - tem de voltar e está voltando a ser o que sempre foi, um mergulho lírico ou filosófico, sempre profundo, na vasta e complexa realidade do mundo.Grande abraço!

 A Máquina do Mundo

Carlos Drummond de Andrade

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

De Ronaldo Mousinho:

Cogito, de nossa autoria, saúda o experimento do clone: 

Viver é constatar em esplendor,
É vislumbrar o impossível no potencial possível
Ser humano é ser Deus em juventude,
É cogitar mistério ante o existir,
É transição, arrebatamento,
Ascensão cosmológica ou niílica prostração ante a falibilidade.
Que somos?
Fagulha anímica, átomo eterno,
Ou mero vivente transitório?
Morte, até qdo. serás mistério?
Trajetória estimulada por contínua busca do "onde, para onde"
Mistério q. se eterniza em vida onde navegamos à deriva
Cogitando.

De José Carlos Peliano

Segue aqui um poema simples mas poderoso de Clarice Lispector, aquele de duas imagens da mesma imagem no espelho, atendendo ao chamado de meu amigo poeta da safra que nunca se quebra:

Não te amo mais
Clarice Lispector
Não te amo mais
Estarei mentindo dizendo que
Ainda te quero como sempre quis
Tenho certeza que
Nada foi em vão
Sinto dentro de mim que
Você não significa nada
Não poderia dizer mais que
Alimento um grande amor
Sinto cada vez mais que
Já te esqueci!
E jamais usarei a frase
Eu te amo!
Sinto, mas tenho que dizer a verdade
É tarde demais...

(Obs importante: vale ressaltar que sua leitura é feita de ordem inversa, ou seja de baixo para cima - ocorre duas interpretações distintas conforme o fluxo da leitura)

18 de dezembro de 2013

Surpreendi-me com a leitura do livro infanto-juvenil "A diaba e sua filha", da africana Marie NDiaye, publicado pela editora Cosac. É uma história simples, de uma diaba que procura pela filha. No entanto, é uma fábula que todos pais dêvem ler com seus filhos e interpretá-lá num diálogo aberto. Pois fica claro que aquilo que abandonamos é o que nos ameaça e intimida. Fiquei comovido.
Pena que os livros estejam tão sobrepreçados para grandes lucros e descontos pelas grandes redes. Um livro destes devia estar com o preço abaixo da metade. Até sugiro à Cosac Naif procurar fazer uma edição mais acessível deste livro. Ele merece e a sociedade brasileira merece. Ele poderia ser outro pequeno príncipe dos tempos atuais.

30 de novembro de 2013

Território

Se a oeste, no amparo das rijas
instalações. Se na jusante
do rio que deu a peste e limpou a pústula.
Se há o homem livre com seu potro,
seu tratado legítimo com o selo.
Se a demência bem que me viu.

Encontrarei instalado o empório
em que nada se fixa ou se foca
e também com todas as ordenações
a sapataria e as lentes de convergir.
A água só para vir o dilúvio e o sábio
que a tempo me corrigiu.

Peremptórios, disponíveis,
os salões com os dançarinos.
As cortesias, a leveza das cortiças,
as  câmaras onde se possa perverter.
Os muares só para ter arca
e passada a hecatombe é para partir.

Para calcinar a dormência em que
extertora o impasse dos passos,
incorporam-se nas novas treliças 
a pressa dos habitantes recortados.
O sopro de homens galantes nas cornetas
e pássaros para anunciar o que é pra vir.

Escolho  o próximo território
se não sou o último sobrevivente.
Aguarda-me o fervor do sódio das ereções,
do sangue quase derramado
bem depois da passagem de Guadalquivir.
Palmas já fertilizam horizontais.

26 de outubro de 2013

O dia nasce em Silvânia
com o céu de plasma da poesia.
Suco de limas da Cracóvia
viajantes parceiros das nuvens
preparam em outras varandas.

Outros preparam geleias de laranja,
empastam pão com essência
de jabuticabas e das mãos.
Não muda, não muda o desejo,
permanece um dogma a opinião.

Na mesma hora anda a mulher,
só de curtas galochas,,
pela rua que esteve num sonho.
Maracanãs no galho de madressilva
advinhe em que céu,  em que dia.

23 de outubro de 2013

ANE

Foto com as poetas Maria Abadia Silva, de Goiás, e Myriam Fraga, de Salvador, na sede da Associação Nacional de Escritores, em 22.10.13, no lançamento da antolologia peruanaTransbrasiliana , de poetas brasileiras.


20 de outubro de 2013

poeminha banal

Estou enamorado de tudo
Não há ausência de sol
A língua afiada
näo haverá dormência de uivos

Certezas de que irei encontrar
ainda que atrás do muro
ainda que esteja cercado
de mínguas e brejal

Não tem importância
que demore a íngua
Não tem importância
que seja banal

biografia autorizada

Aguardo o biógrafo desautorizado
que irá corrigir minha pobreza corrosiva
As cáries e falhas dentárias
Eu em sangue entre engradados
num cômodo escuro e sem água
na empoeirada Vila Matias
com o prático dependurado em minha boca

Teria outras para o biógrafo corrigir
se julgar pouco as minhas torções de dor
só com a droga da poesia
num quarto de frestas e tábuas
As minhas metamorfoses explosivas
A primeira noite de sexo
diante de uma lagarta na parede
Impedir a vizinhança toda acorrendo
para socorrer a amada aos gritos
Arrancar de dentro dos móveis
a correspondência interdita

O biógrafo para corrigir
os bullyngs eu jogado na poeira
gingles ditados à minha nuca
Calu Calu
quantas pregas tem teu vestido azul
O biógrafo não terá de pagar
a percentagem por minha miséria

Se a vida não me inventou outra história
Se não me inventei melhor
melhor invenção pode ocorrer
na máquina de invenção de outro

Poema

Areia flexível penetrável
movente nas longas margens
onde qualquer pata se afunda
qualquer cão babuja fezes

Flacidez desmontada por garras guerras
e não me reconhecem pó ao desamparo
às debulhadas de floradas secas
a ansiar por sangue e rigidez

Resseca a cola vermelha de tuas veias
de permeio em mim
e me encaminharei à margem
das ameias fixas

Gerações aguardarão sobre a muralha
Vão apontar as armas
Vão mirar horizontes
tremeluzes de miragens

Areia e sangue cimentados nas travessias
em defesa das eternas pátrias
Vão admirar as flexíveis plataformas
as irremovíveis montanhas as corcovas

Seguirei afeto ao sólido
interminável marca pelos territórios
impenetrável ao piche da fezes
à acidez das babugens

a Rita Cruz

RETRATO, poema de Antonio Machado

Traduzi para meu consumo o poema "Retrato", do espanhol Antonio Machado. Trata-se de um dos poetas de minha predileção, assim como...