23 de fevereiro de 2023

Rumo aos vulcões mortos

Beatriz, qual desatinado quer apagar a luz?
Quando escurece não conseguimos sair
dos aposentos, mesmo que as portas
sejam partidas. Não conseguimos
usar a faca e descascar a maçã madura.
Apagar a luz é como dar um golpe

Quando as estrelas ficam inquietas
e se despregam da vestimenta do céu
passamos a bater as cabeças
Deixamos de visitar o vizinho
que em um choque vai perder as ventas
Larvas roem as nossas mentes

Apagar a luz é como queimar
as latadas de vides que não conhecemos
Tomaremos vinho amargo, com os pés sem rumo
No escuro, destruiremos polpas carnosas,
por cima de nós dançarão ratos e formigas
Encostas nos enterram dentro do quarto

Beatriz, para o escuro não acabar com a festa
oriente alguém para acender o carvão
Se dermos golpes será para colhermos
e em volta das chamas iremos dançar
Há festa porque não fizemos nenhum inimigo
Há festa porque saímos abraçados pelas portas
rumo aos vulcões mortos − as montanhas

21 de fevereiro de 2023

AI WEIWEI

Seja corajoso. Já li esse verso em algum lugar. Sempre que desistimos da coragem, estamos criando um tirano. Estou arrepiado com as memórias de Ai Weiwei (1000 anos de alegrias e tristezas). Ele não se deixou e não se deixa vencer em momento algum, sempre corajoso. E lembra que o autoritarismo não está só na China ou na Rússia, mas bem na nossa porta liberal. Seus filmes, disponíveis em streaming, trazem a sua resistência.

Escrevi um poema livre a partir de seu trabalho, que ainda está em progresso.

Vivo livre

Vivo para não me aprisionar numa repetição,
metralhadora, porta giratória, links
que um tirano afixa em minha porta
Não nasci para ser banco ou barranco
As minhas razões não podem ser ditas
por outra voz senão pelos acordes de minha garganta
A garganta de um morro não grita senão o eco
de um grito que eu grito com minha postura
O diabo não amassará o meu pão
pois terá de enfrentar outro tridente em minha mão
A rua terá guardado um lado pra mim
e não é a sarjeta onde querem a minha cama
Ninguém vai se sentar em minhas costas
pois nunca me fixarei num parque
Não fico aguardando a água passar enquanto solapam
minha areia e arrancam minhas pedras
Estou vivo como um cabo de aço
a arrastar uma casa em trepidações de um terremoto
Como bananas como bananas
e refuto o que me vem das ameaças dos músculos
Acolho o que concorda que sou dono de minhas palavras,
se tudo que mente atrofia a minha mente
Não repito o que aleluia o que amém
Não adoro um Deus na estrada um Deus na capela
mas o Deus que cresce o pasto e se afasta
para a criança e o cavalo passarem
Destroço o tirano que quer mandar em minha casa,
me impedir de ter meu teto e meu tato, de entender
o que eu quiser entender. Por exemplo
colher uma vara e correr com os vendilhões
e enxotar os mentirões
Eu amo se eu te amo
Eu me amarro se eu me amarro a que me amarro
Eu sou livre se eu me livro

15 de fevereiro de 2023

Diálogo com o hino de Sófocles

É bem traduzida no Brasil a peça Antígona, de Sófocles. Nessa peça se encontra o poema que passaram a chamar Ode ao Homem, que considero uma grande saudação à capacidade humana de manter domínio sobre as coisas terrenas. Em momento de grandes dúvidas sobre a ética, compus um poema, com todas as minhas limitações, dialogando com Sófocles. Incluo como epígrafe os versos finais do poema, em tradução do poeta Guilherme de Almeida.

 

Quando respeita as leis
e os juramentos dos deuses,
é digno da pátria; mas é sem pátria
o que por orgulho a conduz ao mal:
esse não entre em minha casa
nem comigo tenha um pensamento igual.

Sófocles



Desastre ter de gastar pergaminho
para narrar horrores.
Ainda é prodigioso o homem
após aprender a organizar com habilidade
os artifícios do mal?

Por mais consciente da necessária
constância das velas para enfrentar
as estocadas tempestuosas do Noto,
ufana-se o homem
do impudor de impor destroços.
E, para os traços da charrua, escraviza,
em desperdício dos esforços
dos antepassados para viverem
em urbes pacificadas e livres.

O homem anula com ganância,
traz entorse com mercúrio
para justificar aquilo que mente,
apesar de ter ciência que posiciona
a mira de ceifar a infância
com balas perdidas e fome.
Enfuna maldade na forma de empilhar,
esmigalhar para enriquecer com ouro,
estanho e orçamento a que impõe sigilo.
Debaixo do banco traseiro
carrega dinheiro vivo e fuzil.

Há o palco para o espetáculo de prodígios.
mas se socorre da extorsão,
inocula diabólicas incertezas
com bordões idênticos e furunculosos.
E insere nos mesmos canais,
em todas abas da língua,
as fúrias. Com uma quântica inverossímil
enlouquece as formas de compreender
e de forjar razões.

Quem viu aquele que se ajoelha
e ora em prantos ao deus pneu?
Aquela senhora, que se afastou
envenenada de seu lar, deixou o jardim a secar
com a desventurada ausência.
Ficou o registro fotográfico.
Ao pé de uma escada
onde dois soldados ao alto
desprezam o zelo de seus rogos.
Riem do pedido sôfrego para que arrombem
e desconectem os cabos das urnas.

Sófocles, dois pequenos soldados
para escorraçar os juízes,
pois nas fronteiras não avançam inimigos
e o homem, em sua Pátria,
agora é o farsante de si mesmo.

O general, em seu refúgio, defende a tutela,
pois a democracia não atende
a bonança dos interesses classistas,
certamente de pecúnia farta.
Se estão impressos em artigo
esses não são versos de invenção do escriba,

Merece desterro o que desonra
a sua Pátria, que desfoca os artigos da lei,
o fluir de uma água até uma tribo
e atrofia os pequenos músculos
de crianças irmãs yanomamis.

É festiva a minha casa,
e, para que não a habite a desonra,
não dá acolhida a golpes, a fuzis no forro.
Esforço-me para que um voto
desintoxique-nos das inflamações da loucura
e à auspiciosa liberdade
não venha contradizer o édito.

Oh! Sófocles, livre sopra o Noto
e embaralha as folhas de pergaminho.
Prodígios de napalm, cianureto,
casas nas encostas, o veneno da mentira,
afundada barcaça do que emigra.
Quando deixarão de bater em nossa face 
os arrotos da civilidade perdida?

6 de fevereiro de 2023

Carta que acompanhou uma biografia de Sócrates para uma criança sábia

Eu vi este livrinho hoje na banca de revista.

Ele me disse: me leva para a Lívia, que quer ser dona da sabedoria!

Adoro este filósofo. Ele não escreveu nenhum livro. Ele ensinava filosofia nas ruas da Grécia antiga. E não cobrava nada pelas aulas. Assim, às vezes ele ficava até sem calçado. Xantipa, mulher dele, fechava a casa para seus amigos não entrarem, pois todos gostavam de suas conversas filosóficas, mas consumiam as coisas e não pagavam nada por isso. Xantipa dizia: você precisa ganhar dinheiro. E ele respondia que não precisava de dinheiro: “São tantas as coisas de que não preciso”, ele dizia. O dinheiro comprava as coisas de que ele não precisava.

Ele dizia que algumas coisas o homem não pode pedir aos outros. Por exemplo, se for para cozinhar, posso pedir ao cozinheiro para cozinhar. Se for para dirigir o navio, posso pedir ao responsável pela direção do navio. Mas, e se precisar da sabedoria, de saber o que é o amor, a razão? Essas coisas não podemos pedir aos outros para pensarem por nós. Nós mesmos precisamos aprender a pensar. Somos nós que dirigimos o nosso pensamento. Não podemos entregar os nossos pensamentos para os outros.

Alguma coisa que você ler deste livrinho velho já será importante!

Com o abraço do

Salomão Sousa

Poemas sobre o luto, por Paula Akkari

A jovem psicóloga Paula Akkari fez uma postagem importante em seu Instagram sobre nove poemas brasileiros sobre o luto.
1) A Carolina, de Machado de Assis
2) Hão de chorar por ela os cinamomos, soneto de Alphonsus de Guimaraens
3) Cântico do Calvario, de Fagundes Varela
4) Morte de Clarice Lispector, de Ferreira Gullar
6) Leitura, de Adélia Prado
7) Mário de Andrade desce aos infernos, de Carlos Drmmond de Andrade
8) Exumação de Mário de Andrade, de Vinícius de Moraes
9) A Mário de Andrade Ausente, de Manuel Bandeira


3 de fevereiro de 2023

O grito de Elisa Marques para reparação da perda

Tomei conhecimento pelas redes sociais do lançamento do livro "Até minha terapeuta sente falta de você", de Elisa Marques. Encomendei-o ato contínuo à autora, mesmo sabendo que o estilo obedece uma característica que não atende os pressupostos poéticos que defendo. No entanto, não posso continuar resistindo aproximação dessa poética confessional, talvez implantada pela ligação dos autores novos com o tom direto das redes sociais. Ainda mais que uma das últimas autoras a levar o prêmio Nobel, Louise Gluck, escreve na mesma tonalidade de cartões amorosos. Vejamos um exemplo de Louise Gluck, com o estilo direto, diríamos prosaico e oral:

Me tornei uma criminosa ao me apaixonar.
Antes disso eu era uma garçonete.
 
Eu não queria ir para Chicago contigo.

É o primeiro livro dessa goiana, que está ligada ao cinema. Foi publicado pela editora Negalillu, que se dedica aos novos autores goianos, tais como Walacy Neto, que debutou na editora com um livro especialmente promissor para uma futura carreira poética bem sucedida.

São poemas minimalistas, com mensagens diretas, questionando a perda, o esvair do que foi: "os pedaços de ti que achei que nunca/me deixariam". Mas há permanência no amor? Remete-nos a Nagima Oshima, no filme "O império da paixão", que discute o quão destrutivo é a permanência da pulsão amorosa (sexual). Deixo para autoridades apropriadas a discussão da questão mulher lésbica e LGBTQIA+, conforme expresso na ficha catalográfica.

Não inferimos se a construção do livro tenha ligação com alguma atividade terapêutica direta, mas a poesia é, em si, uma atividade de desafogamento pessoal, sobretudo nos poemas de Elisa Marques. Antes de qualquer perda, confessa e aceita e valoriza a ausência do avô - Josiano Marques, escritor e professor goiano, que serve de referência para a autora. 

No entanto, temos de reconhecer que passamos por um momento de necessária alteridade. Não só a poesia tem de dialogar com as perdas, com os descaminhos e desentendimentos. Temos de recorrer ao diálogo direto para essa busca corporal de compreensão. Mesmo quando a linguagem não se livra de eivar-se de rancor (se fosse uma linguagem política, a linguagem portaria o ódio). Vivemos um mundo de ausências, por isso a selva povoada de rancor e ódio, com urgência de alteridade, seja ela postal ou grito, para absorção da ausência e do divergente.

Elisa Marques traz seu grito para reparar as perdas. Falta-nos gritar a alteridade para reparação dos danos sociais da política. 

você me ama
por causa deste livro.
e eu não sei se
te amo sem ele.

Se fraquejamos, o napalm cai na nossa cabeça.

Após assistir o filme "Tár", revi "Apocalypse Now" só para matar a saudade da recitação do poema de Eliot por Marlon Brando. E, nessa sequência às avessas, reli pela terceira vez o romance "Coração das Trevas",  de Joseph Conrad, que originou esse imbróglio todo. Li os capítulos I e II na edição da editora Mojo e o III, na edição da Darkside. Existem umas dez traduções em catálogo. A crítica é unânime em indicar a edição da Hedra. Mas quem quiser mais conforto na leitura, deve optar pela edição da Antofágica, com letras maiores. Não é de se desconsiderar a edição da editora Ubu, certamente a mais cuidada, com iconografia de Regina Rennó e farto material complementar. A tradução da Mojo é bem poética e as palavras estão ajustadas para a linguagem do tempo presente. A da Darkside é mais fiel. Em ambas, bem como da  Cia das Letras e da Ubu, a tipologia é menor. Portanto, é um livro, merecidamente, bem traduzido no Brasil.

Mas vamos em frente.

Conrad era ucraniano e tornou-se um dos grandes escritores de língua inglesa após morar na França. "Coração das Trevas" trata do colonialismo e da admiração por lideranças despóticas, de forma cega. O filme de Copolla não é fiel ao livro e mostra que a fidelidade ao despotismo deve ser quebrado. Copolla, em "Apocalypse Now", repudia as guerras coloniais e mostra o absurdo despótico da atuação das lideranças. Tanto o romance quanto filme, tudo muito permeado com poesia e dolorosa exposição do lado macabro da violência. São obras a nos alertar para a necessidade de estarmos atentos para que o humanismo não seja violentado. Veja o caso dos yanomamis.

Se fraquejamos, o napalm cai na nossa cabeça.

RETRATO, poema de Antonio Machado

Traduzi para meu consumo o poema "Retrato", do espanhol Antonio Machado. Trata-se de um dos poetas de minha predileção, assim como...