10 de março de 2024

RETRATO, poema de Antonio Machado

Traduzi para meu consumo o poema "Retrato", do espanhol Antonio Machado. Trata-se de um dos poetas de minha predileção, assim como Eliot, Vallejo e Jorge de Lima. Poetas de intensa sonoridade e valorização de imagens bem específicas, raras. É uma tradução livre, sem contagem desílabas, pois os versos são alexandrinos. E nem preocupação com as rimas, bem sonoras. Mas fica o endereço do original para quem desejar fazer as próprias verificações. É um poema que trata da metapoética do autor, com as próprias experiências memorialísticas de seu tempo. Bravo, Antonio Machado.
Antonio Machado
Minha infância são lembranças de um pátio de Sevilha
e um horto claro onde amadurece o limoeiro;
minha juventude, vinte anos em terras de Castela;
minha história, alguns casos que lembrar não quero.
Nem um sedutor Mañara, nem um Bradomín eu fui;
conheceis o torpe desalinho da minha indumentária,
mas recebi a flecha que me assestou Cupido,
e amei tudo que essas terras trazem de hospitaleiro.
Há em minhas veias gotas de sangue jacobino,
mas meu verso brota de manancial sereno;
e, mais que um homem que sabe usar sua doutrina,
sou, no bom sentido da palavra, bom.
Adoro a formosura, e na moderna estética
cortei as velhas rosas do horto de Ronsard;
mas não amo os enfeites da atual cosmética,
nem sou uma ave dessas do novo oco-trinar.
Desdenho as romanzas dos tenores vazios
e o coro dos grilos que cantam para a lua.
Estaco-me para distinguir as vozes dos ecos
e escuto somente, entre as vozes, uma.
Sou clássico ou romântico? Não sei. Quisera
deixar meu verso como o capitão deixa sua espada:
famosa pela mão viril que a brandiu,
em vez de apreciada pelo douto ofício do forjador.
Converso com o homem que sempre vai comigo
- quem fala sozinho espera um dia falar com Deus -;
meu solilóquio pratico com esse bom amigo
que me ensinou o segredo da filantropia.
No fim, nada lhes devo; deveis-me quanto escrevi.
recorro ao meu trabalho, com meu dinheiro pago
o traje que me cobre e a mansão que habito,
o pão que me alimenta e o leito em que jazo.
E quando chegar o dia da última viagem
e esteja a partir a nave que nunca há de tornar,
vais me encontrar a bordo com ligeira equipagem,
próximo da nudez, idêntico aos filhos do mar.

7 de março de 2024

Passeio com Eurídice na ausência de Luíza

Aqui estamos afundados na dengue.

Para deixarmos o corpo fora

esticamo-nos dentro do olho do monstro.

Mas temos sol, temos outros astros,

e divertimentos de enchentes.

Liguemos os véus do tempo

e cumpramos os gestos de reiniciar o reino,

está velho o norte em que vamos.

 

Cremos. A noite não passa

de um desarme dos remos.

Temos sobre o leito o tesouro de esmeraldas

quando nos pomos a navegar

e não é de roubo nossas lâmpadas.

Implica quase sempre tirarmos as travas.

Enquanto Luísa se ausenta,

com Eurídice passemos a tormenta.

 

Construímos o leito

para que as palavras se amem.

Salgado Maranhão, Homero.

Cabem em nosso corpo o vento

e os desejos de Eurídice.

Talvez escaravelhos nos dorsos,

se prazeres de esmeraldas sabemos.

Não embarcamos serpentes.





RETRATO, poema de Antonio Machado

Traduzi para meu consumo o poema "Retrato", do espanhol Antonio Machado. Trata-se de um dos poetas de minha predileção, assim como...