6 de novembro de 2019

O COQUE

Para Mariza Buslik

Sou aficionado pela origem das palavras e pelos diversos significados que elas vão ganhando durante os desdobramentos dos choques da Cultura. Uma palavra é a representação de um ato da Civilização. Senão, das Civilizações. Ocorre ainda que é mais confortável explorar as possibilidades do uso de uma palavra do que as consequências da manipulação delas, tais como “baratas”, “ratos” e “pragas do Egito” para desqualificar raças e etnias e, depois, termos o holocausto e o genocídio dos tutsis em Ruanda.

Noutro dia, fui surpreendido com as observações de uma amiga, que teve a visibilidade prejudicada num teatro em razão de um “coque”. Usava-o uma mulher que ocupava a cadeira bem na sua frente. O coque elevado e volumoso impediu que ela assistisse ao espetáculo.

De cara, fui levado a imaginar que a tradição do coque venha das etnias africanas, onde os espaços da natureza são abertos, com longos horizontes, e as mulheres, para serem melhores notadas, alongam seus corpos com elevados penteados. Realmente, há registro da ocorrência da prática no Zaire. A etnia mangbetu pressionam os crânios dos bebês para que eles cresçam com cabeças alongadas e os rostos, quando forem adultos, sejam afilados. As moças da etnia, para prolongar ainda mais o rosto, trançam finos coques, que serão encimados por uma fina coroa rija.

Ao consultar verbete “coque”, verificamos que a palavra ganhou diversos significados ao longo da História. Alguns deles: batida na cabeça, da onomatopeia cocre; cozinheiro dos marnotos nas margens do rio Sado, do inglês cook; material combustível sólido, resultado da calcificação ou destilação da hulha, do inglês coke; roseta de cores, em forma de chapéu ou enfeite para cavalos, como distintivo de partido, nação ou instituição, bem como adorno de penas usado na cabeça, do francês cocarde; e porção de cabelo manipulado ou enrolado em alguma forma, do francês coque (concha). Portanto, foi na França, que vem sendo o berço da moda, onde foi cunhado o termo “coque” para os tipos de penteado com elevação, sejam para o alto, para as laterais ou para a parte traseira da cabeça. Nem só em modelação em concha (coque), mas até em formato de abacaxi.

Podem alegar ‒ e assim fazem os registros do design da moda ‒ que o coque surgiu na Grécia antiga, onde foi usado pelas mulheres, inclusive deusas femininas, e também por alguns homens. As gregas, no início, prendiam o cabelo com um coque chignon, depois passaram a ser coques redondos.

Mas a prática passou por várias civilizações, inclusive pela China antiga. No Egito, os coques chegaram a ser arranjados com arame, e com esses penteados as egípcias eram enterradas. Na Suméria (3 000 a. C.), as mulheres usavam os seus cabelos em coque (chignon pesado). As mechas eram pulverizadas com pó de ouro ou perfumado amido amarelo. Acresciam ornamentos, sobretudo presilhas de ouro.

Os samurais tinham diversos cortes de cabelo. No período Edo, que vai de 1603 a 1869, o estilo se compunha de parte superior da cabeça raspada com os cabelos laterais curtos e um rabo na parte de trás, que era enrijecido com óleo e amarrado com um fio no topo da cabeça, modelado no formato de uma adaga em riste. Os ronins, que não tinham mestre e, por isso eram considerados sem honra, tinham de cortar esses rabos de cabelo. Portanto, para os samurais, o coque é o sinal de honra, obtida com a aprendizagem através de um mestre. O coque passou a ser usado pelos lutadores de sumô. Ao menos para mim é no sumô que o coque recebe a moldagem mais bem elaborada. Com lubrificação especial, uma porção de cabelo é elevada na parte superior da cabeça em graciosa forma de concha. O último corte de delineamento desta porção de cabelo é feito pelo treinador – ato que, assim como para a tradição dos samurais, também a ação do mestre atribui honra ao lutador de sumô.

Na Idade Média, com a inibição do erotismo pela Igreja, as mulheres passaram a esconder os cabelos. Depois, no Século XVIII, as cortesãs usavam trunfas, chamados fontages, que chegavam a 80 cm de altura. As trunfas eram falsos coques. Estes elevados turbantes serviam para elas se exporem sem quebrar a regra de exposição dos cabelos e permitiam às cortesãs serem notadas à distância nos salões.

Na Inglaterra vitoriana, o coque virou símbolo de penteado para as mulheres mais velhas. Já na era Moderna, o coque ganhou sofisticação para as atrizes de Hollywood dos anos 1950 e 1960. Com o advento das liberdades individuais alcançadas pelas mulheres, no Século XX, os cortes de cabelo passaram a ser adotados no formato reto, com franja, o Corte Chanel e o curto, com um fio de pega rapaz. No entanto, ainda predominam no Século XXI os coques, alguns bem elevados, fixados com laquê, indispensáveis nas cerimônias, sobretudo de casamento.

Os quiropraxistas e outros profissionais desaconselham a adoção do penteado em coque. Pois, para evitar desmanchar o arranjo, a mulher pode adotar posturas que não oferecem descanso ao corpo e ter a saúde afetada com dores lombares, nas costas e na coluna. Independente do aconselhamento do risco para a saúde, são diversos modelos de coque sugeridos: grego, grego com trança, grego com cachos, rosquinha com trança ou donut, baixo, coque leque, coque duplo, coque deusa grega, ou, então, simplesmente, coque banana. Entre inúmeros outros, coque abacaxi ou afropuff, com turbante.  Cada um adote ou invente o seu. Por exemplo – o sumô concha.

O coque, geralmente em forma de rodilha, assume em muitos momentos o aspecto de instrumento de trabalho, servindo para apoio de cargas na cabeça tanto na África como em regiões de diversos outros países, inclusive no Brasil.

Assim como não se deve manipular os nomes de animais peçonhentos ou de insetos para evitar holocaustos ou genocídios, para boa convivência social, com as pessoas ocupando ambientes fechados e reduzidos, aconselha-se a não usar coques excessivamente elevados para não prejudicar a visibilidade nos teatros, cinemas e estádios. A minha amiga – para obter espaço para visibilidade – não pôde, por falta de cadeira desocupada, mudar de lugar e, por civilidade, resistiu e não deu um coque na pessoa da frente para que pudesse assistir com prazer ao espetáculo.

RETRATO, poema de Antonio Machado

Traduzi para meu consumo o poema "Retrato", do espanhol Antonio Machado. Trata-se de um dos poetas de minha predileção, assim como...