16 de julho de 2018

Cidade visível


Na primeira cidade encontrei pessoas sábias e ignorantes,
algumas que soltavam fogos quando chegava o descendente
de perpetuar a fidalguia da família e a habitabilidade das ruas,
que sem habitantes novos as casas ficam taperas
e depois se desmoronam pela ação dos corós nas madeiras
e da chuva a empurrar ano a ano as telhas até lançá-las podres
e em cacos ao chão.
Era uma cidade que não foi mencionada por Marco Polo
nos muitos relatos a Kublai Khan, mas que tinha joões-de-barro
que se acasalavam depois de arruaças exaltadas
e que pagou sua conta de butim após as raras invasões
das ordas dos tártaros, que ali podiam ser chamados de banqueiros.
Para que um não tivesse sossego, outro arrumava um chuço
e seguia atrás a cutucá-lo para que a inquietude fosse constante.
Não menciono o cio dos gatos e o ruivar dos cães,
que esta é a maneira que o silêncio encontra para se interromper
e os ouvidos não assoviarem internamente por nada.
Tem, no entanto, a raridade de um camelo que bebe água
na poça se há o esquecimento de um baldio na lateral de um bairro,
pois a imaginação tem de trazer outros habitantes para a cidade,
e acabam sendo os mais úteis e interessantes.
Depois que muitas telhas apodreceram, ratazanas se mostravam
serelepes perto das estações e das calçadas, e garotas
desejavam coletá-las em bolsas quentes e domesticá-las
para que não passassem fome e a família já se divertisse.
Enquanto as ratazanas se divertem junto aos pombos
e os pais impedem as filhas de recolhê-las para refúgio quente
passa um homem coxo empurrando o carrinho
com coentro jiló varas espetadas com três pés de alface cada.
E o homem das verduras vai dando bom dia a todos que estão rua
e alguns respondem e outros acham impertinente o bom dia de um coxo
e depois se refestelam com o guisado temperado com o coentro
regado com água reutilizada dos esgotos e o mijo de um coxo.
Era uma cidade que não tinha nada de estúpido.
Os casais trocavam as agendas só para confirmar
os casos extraconjugais, e haver aceitação depois dos gritos.
Assim se descobriu na cidade que os gritos limpam pigarros,
espantam pássaros e atraem o vendedor de ovos até a porta.
Os habitantes eram cordatos. Alguns fazem algazarra
até alta madrugada, acelerando os carros para recarregar as baterias
e a música não seja intermitente. Depois dormem até alta manhã
e quase viram o dia adormecidos só para que o coxo
e os velhos insones não digam que não desfrutaram do silêncio.
Na primeira cidade, às vezes cai uma calha
e às vezes calha de haver homens ignorantes e sábios.

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