20 de dezembro de 2018

Tradução que fiz para o poema de Mário Benedetti

Rasante ao sonho

Só uma temporada provisória,
tatuagem de incontáveis tradições,
escuro mausoléu onde começa
a existir o futuro, a tornar-se pedra.

Nada aqui, nada além. São as palavras
do mago longínquo e espargido.

Não resta dúvida, a infância esperneia,
começa a fazer seus inventários,
a lançar suas amplas redes para breve.
É uma ilha limpa e sobretudo
fugaz, é um veio de primícias,
que lentamente vão se ressecando.

Deixa-se para trás como uma rápida paisagem
em que persistiram algumas nuvens,
um biombo, dois brinquedos, três ramos,
ou apenas um odor, uma cinza.
Com luzes fica para trás, na intempérie,
jacente e esquecido para sempre,
só com sua atitude irresistível,
e um pudor incorpóreo, destroçado.
Mas nunca destruída, fabulosa
infância entre suas redes extinguida.

Mas algo fica para trás. Essa entranhável
permite o fervor, o pasmo, o fruto,
ao acaso enfia os dentes noutra bruma,
somos os moribundos que nascemos
da carne, do sangue, do entusiasmo,
burlamos do sol, da penumbra,
Manipulamos a glória como um lápis
e nas virgens paredes desenhamos
o amor e seu velho ápice, o ódio,
o grito que nos traz a vingança
nas mãos bem antes do que nos lábios.

O nevoeiro se acende. Somos névoa
sob o céu compacto, insolidário,
o assombro faz as contas e não pode
manter-nos serenos, tranquilos,
somos o invasor protagonista
que destroça o tempo, que faz ruído
pueril, que cria palavras, que faz pactos,
somos tão poderosos, tão eternos,
que cerramos os punhos e o verão
começa a soluçar entre as árvores.

Vamos dizer melhor: acreditamos que soluça.
O verão é uma névoa, portanto
não tem pálpebras nem lágrimas,
em suas tardes de atmosfera mais tênue
é calor, é calor, e nas manhãs
de ar pesado, corporal, viscoso,
é calor, é calor. Com isso basta.

De todos os modos muda as garotas,
ilumina-as, ondula-as, e logo
respira-as e suspira como acordes,
envolve-as em amor, torná-as carne,
pinta-lhes os braços com veias tênues
em cores e luzes suplementares,
abre-lhes decotes para que alguém verta
qualquer olhar, esse poder possessivo.

A vida, que região esplendorosa.
Quem escruta a morte, quem a acaricia?
À forca com isso. Quem pensa nessa
impossível quietude quando é hora
de cada um morder sua fruta,
de usar seu espelho, de gritar seu grito,
de cuspir para os céus, de ir subindo
de dois em dois todas as escadas.

A morte não se apura, sem dúvida
não se apela. Tão pouco se impacienta.
Há tantas mortes como negações.
A morte que desgarra, a que expulsa,
a que embruxa, a que arde, a que esgota,
a que enluta o amor, a que excremento,
a que colhe, a que usa, a que abranda,
a morte do areal, a do pântano,
a do abismo, a da água, a da almofada.

Há tantas mortes como teologias,
mas todas se juntam na espera.
Esta que se aproxima é uma morte só.
Escarnecida, rancorosa, oca,
sua insônia enlouquecida desaba
sobre todos os sonhos, seu delírio
se parece bastante à sanidade.
Morte esbelta e rompente, que incrível
sereia para o Mar dos Suicidas.

Não canta, mas indica, marca, alude,
exibe seus vorazes argumentos,
seus cartazes turísticos, explica
porque é tão milagrosa sua iminência,
porque é tão atrativo seu desastre,
porque tão confortável seu vazio.

Não canta, mas é como se cantasse.
Sua demagogia negra usa pombas,
telegramas e rezas e suspiros,
sonatas para piano, harpas de ferrugem
vitrinas de amor mumificado,
relógios de luxúria que amontoam
segundos e segundos e outras prorrogações.

Não canta, mas é como se cantasse,
seu espanto vendaval silva na espiga,
sua pergunta repica no silêncio,
sua louca confiança exala um réquiem
que é prado e é folhagem e é ameia.

Há que se tornar surdo e mudo e cego,
surdo de amor, de amor emudecido,
cego de amor. Olfato, gosto e tato
ficam para afastar a morte e para
fundir-se na mulher, nessa onda
que é tempo e língua e braços e pulsar,
essa mulher descanso, mulher relva,
que é pranto e rosto e semeadura e apetite,
essa mulher colheita, mulher signo,
que é paz e alento e cabala e ofegante.

Há que amar com horror para salvar-se,
amanhecer quando os mansos dentes
mordendo, para salvar-se, ou pelo menos
para crer-se a salvo, que é o bastante.
Há que amar sentenciado e sem urgência,
para se salvar, para guarnecer-se
dessa morte que chove gelo e fogo.

Há o céu comum, a alba escândalo
o gozo atriz, o milagroso caos,
a pele abismo, a granada aberta,
a única unidade composta,
a derrota de todas as cautelas.

Há que amar com valor, para salvar-se.
Sem lua, sem nostalgia, sem pretextos.
Há que desperdiçar numa noite
que pode ser mil e uma - o universo
-sem augúrios, sem planos, sem tremores,
sem convênios, sem votos, com esquecimento,
nus corpo e alma, disponíveis
para ser outro e outro rasante ao sonho.

Bendita noite côncava, delícia
de encontrar um abraço à deriva
e entrar nesse enigma, sem astúcia,
e voltar pelo ar ao ar livre,
há que amar com amor, para salvar-se.

Então chegam as contradições
ou seja a razão. O mundo existe
com manchas, sem arar e não há feitiço
nem fé que o desminta ou modifique.

O manancial seca, a árvore cai,
o sangue flui, o ódio torna-se muro,
É meu irmão o verdugo? Esse assassino
e Deus padrasto todo-poderoso,
esse senhor do vômito, esse artífice
da hecatombe, pode ser meu irmão?
Fornecedor de napalm, profeta imbecil,
esse, meu próximo? esse, meu semelhante?
Síndico em todo caso da morte,
argumento e proclamação da ruína,
poder e braço executor. Esterco.

Desta vez não olharei meus passos
senão o contorno triste, calcinado.
Olho a minha sombra que está envelhecendo,
a sombra dos meus que envelhecem.

O mundo existe. Com ou sem seus manes,
com ou sem seu sinal. Existe. Ponto.

O mundo existe com meus ex iguais,
com meus amigos-inimigos,
que já esqueci porque traíram.

Estendo minha mão às vezes e está só,
e está mais só quando não a estendo,
penso nos compradores emboscados
e sinto dor e sinto raiva e sinto
uma reprovação que começa em minhas lealdades,
em minhas confianças sem o menor motivo,
em minha invenção do próximo-meu-aliado.
Nem ainda agora me resigno a crer nele.

Nem todos são assim, nem todos cedem.
Terei de repeti-lo às escondidas
e baralhar de novo o almanaque.

Meu coração acovardado segue
inventando valor, abrindo créditos,
arrancando cabos só à esquerda,
aprendendo a aprender, pobre aleluia,
e quem sabe, quem sabe se entre tanta
mentira incandescente, não fique algo
de verdade à sombra. E não é metáfora.

Nada aqui, nada além. São as palavras
do mago longínquo e espargido.

Mas por que acreditar de pés juntos?
Em que galáxia está o certificado?

Algo aqui, nada além. É tão diferente?
Proponho-o sob minhas pálpebras
e em minha boca fechada.
É tão diferente?
Já sei, há razões nítidas, famosas,
há cem teorias sobre a derrota,
há argumentos para suicidar-se.
Mas e se há um resquício?
É tão diferente,
tão néscio, tão ridículo, tão torpe,
ter um espaçoso sonho próprio
onde o homem morra mas atue
como imortal?

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