13 de maio de 2023

Alice nas cidades

O excesso de palavras nem sempre apresenta solução para o cinema e a música. É a intensidade com que conseguimos interpretar que dá maior amplitude a um filme ou a uma peça musical. Não adianta assistir "Alice nas cidades", de Wim Wenders, ou ouvir um Noturno, de Chopin, aguardando por um discurso. O discurso terá de ser proferido pelo ouvinte, pelo expectador. Não adianta encarar, por exemplo, "O cavalo de Turim", de Béla Tarr, sem um discurso introspectivo preparado com cultura, pois, caso contrário, achará que o cineasta está de gozação com o expectador. Bagagem cultural e perspicácia interpretativa é o que arranca significado de uma obra de arte. Béla Tarr é um dos últimos pai de santo do cinema.
    Estou aqui na área de minha casa, ouço o terceiro trem passar no dia, ouço sabiás e bem-te-vis desde as cinco horas da manhã. E já revi o filme "Alice nas cidades". É um filme de 1974, no rescaldo da contracultura. Traz um novo formato de ver a paisagem e o homem, que está deformado pelo desconforto de ajustar-se á uma nova urbanização, e também de relacionamento. Temos casais que não se compreendem, o encontro casual, e a criança que já disputa com o adulto a definição do conhecimento destas relações.
    Trata-se de um filme que não se esgota naquilo que pode ser visto inicialmente. Outros leituras antropológicas e sociológicas sempre surgirão nas interpretações que possam ser feitas no futuro sobre ele. A garotinha, em determinado momento do filme, na procura de uma casa antiga que pode estar destruída para surgimento de um novo projeto de urbanização, lembra-nos: "O passado ainda não terminou". Vivemos sempre um processo de desejo de acabar com todo o passado o mais rápido possível, mas ele está sempre impregnado em qualquer história pessoal, ainda que a história pessoal seja a história das cidades.
    É um filme que mostra o esvaziamento dos espaços, o esvaziamento dos encontros. Onde estão as pessoas? Antecipa esse desconforto do excesso de imagens, conhecimento pela imagem; superpovoamento e a cidade está vazia, pois as pessoas só existem no isolamento e no movimento. Onde que elas estão se relacionando e pensando?
    "Alice nas cidades" é a busca de nosso passado. Mas será que havia comunicação no passado? E mostra que a própria busca já é a comunicação, já é o encontro, se permitimos que a nossa inocência circule junto com o outro, sem nenhuma necessidade de exploração, só pelo conforto de estar junto.
    Há uma cena em que Alice e Phillip sentam no café para lanchar. Ali há a demonstração do excesso de sufocamento do homem pelo mundo moderno. A paisagem deteriorada não só na urbanização. Mas também nos espaços, que vão sendo invadidos por publicidade, ruído... Noutro momento, num quarto de hotel, Philipp liga o rádio e tem de ouvir a música com superposição do ruído da cidade e da necessidade de comunicação de Alice. O que há para ouvir, ver e comunicar na balbúrdia emocional do mundo moderno, industrial?
    Gosto destes filmes com espaços para eu pensar, preenher espaços com a minha imaginação. Não quero que diga tudo por mim e para mim.
    Eu sempre me imagino andando pelas cidades com Alice.

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