Quanto abordei minimamente a movimentação da poesia em
2015, disse que em Brasília a poesia “orbitou no mesmo e no frágil”. Alguns
poderão estar se indagando se a expressão não mereceria desdobramento para uma
maior claridade sobre este “mesmo” e este “frágil”. Afinal estou no processo de construção da
poesia de Brasília desde os anos 1970 e não preciso temer expressar uma abordagem
crítica ao que ocorre ano a ano na produção literária da cidade.
Há que reconhecer que alguns
movimentos não foram enriquecedores para os poetas autóctones. Quando o poeta
vai para a rua em movimentos como o Coletivo de Poetas e Mostra Itinerante
Poesia Falada a cidade ganha, mas os poetas perdem. Os locais de leitura exigem
poemas de expressividade nua e crua, enquanto a poesia exige processos
internos, nos tempos atuais, que não servem para serem levados para ambientes
enfumaçados e descompromissados como cafés e casas noturnas. Quando contatamos
os livros dos autores que integram esses movimentos, deparamos com uma poesia excessivamente
oral, debochada, com perda de construção interna, desenvolvimento linguístico e
atemporalidade.
Uma poesia que está perdendo
muito com este movimento é a de Carla Andrade. No pequeno livrete que ela
publicou em 2015, Voltagem ˗
pequeno, que chega a ser insuficiente para se ter noção exata de sua poesia ˗,
ela tem a obrigação de se debruçar excessivamente sobre o corpo. E essa
temática já está por demais explorada. Tomemos o poema "Hecatombe de emoções".
Alguns versos são cativantes: E as
palavras ficam um pouco rebentas/querendo sair do ovo dos ponteiros. Isso do
“ovo dos ponteiros” é sensacional. E ela desdobra outras imagens geniais: “esterco de cada um”, “enxurrada de flores amarelas”. Depois descamba para o amontoado inútil de
adjetivos: olhos
convergentes/irrevogáveis… Mas a
poesia dela não precisa de poema como “Função do riso”, que não tem novidade
alguma, a não ser despertar alguma hilaridade durante a leitura em um café (Nunca mais/falo eu te amo. /Esqueça!) E
o segundo terceto merece menos sorte ainda. E a Carla Andrade tem um potencial
inimaginável e nele aposto fundo.
O livro da Noélia Ribeiro, Escalafobética, sofre ainda mais com esta experiência de rua e dos
ecos remanescentes da poesia marginal. Perde totalmente para o superficial. Cheio
de lugares comuns, adolescente. (morro de
medo da paixão) Perto de ti/Arrepio nas costas/Tremores nas pernas. Estás aqui
a me abraçar. Não precisei nem pular páginas para descolar estes versos. Prova
de que a tradição da poesia de Brasília tem sacrificado muitos dos seus ícones,
pois não contribui para que eles evoluam.
Tivemos novos lançamentos de Nicolas Behr. No último nem pude comparecer. É chover no molhado falar do seu processo criativo, que já é íntimo de
todos. Uma obrigatoriedade de registro da cidade, sem se abrir às suas
contradições.
Tivemos ainda Sem passagem para Barcelona, de Alberto Bresciani, pela editora
José Olympio. Talvez o livro mais bem editado, de autor de Brasília, pois saiu
por uma editora de fora. Agrada-me a exatidão, a limpeza da poesia de Bresciani
˗ o que não é suficiente para que ela se apresente resistente. O autor está precisando desdobrar mais as
imagens, atrever-se mais, segurar mais o fôlego para que a temática e as
imagens se distendam numa combustão de maior expressão metafísica. Acho que ele
está sofrendo desse medo do poeta atual: controle da compreensão interior. O
poeta atual sabe mais do que deixa a poesia se expressar.
Ainda tem os livros de Francisco
K e de Angélica Torres Lima, que foram lançados no estertor de 2015. Error, de Francisco K, não se contamina
com os movimentos poéticos de rua, mas não se descola de um minimalismo
mallarmaico. Pelo menos ele se mantém fiel à sua proposta poética. E a poesia
é isso, se a hora do ouro passou:
pérola
negra
araçá
azul
acabou
chorare
tábua
de
esmeralda
aprender
a
nadar
A
poesia está precisando disso mesmo: reaprender a nadar. As braçadas estão muito
curtas para a travessia do inconformismo.
Vamos a O nome nômade, de Angélica Torres de Lima, com posfácio de Ronaldo
Costa Fernandes e orelhas do Alberto Bresciani. É um livro que não escapa dos
movimentos que antecedem a poesia do início deste século. Angélica foi formada
nas ruas de Brasília e é um tanto duro descolar de uma aprendizagem, mas até
que ela consegue. Permanece ainda o excesso de poemas minimalistas, quase
hai-kais, como o “Duo Elo”. E consegue partições que só as vanguardas poderiam ensinar:
O
anjo
tem
num olho
o
halo da lua
no
outro turvo
a
turba
das
ruas sujas.
Acredito
que a poesia ganharia mais se houvesse um fôlego para melhor diluição das
repetições internas. Pelo menos as ruas aqui são sujas. Não há obrigatoriedade
de uma política correta com o espaço urbano. O poema “Por toda a plataforma”
vem confirmar esse discurso real. Prefiro o poeta real ao oficial das loas à
cidade. Só por esse ajuste com a realidade o livro de Angélica Torres Lima se
firma como de grande presença em seu tempo. Não tem pieguice lírica, viaja e dói.
Teve o lançamento de Tatarana, de poesia visual de Felipe
Fortuna. Não consegui ir ao lançamento e também não tenho muito domínio para
abordagem de poesia visual. É matéria para o amigo Antonio Miranda, que, neste
ano, fez várias edições pela Poexilio, editora artesanal que ele mantem para
publicação de obras suas e de autores convidados. Lançou lindas caixas em 2015,
que não são abordadas aqui pela própria características das edições
(limitadíssimas, só para colecionadores). Mas tenho quase todas, inclusive o belo
“Delirium Tremens”, que foi escrito a seis mãos (Antonio Miranda, Zenilton
Gayoso e Salomão Sousa).
Teve a reedição de O prisioneiro, de João Carlos Taveira,
em comemoração aos seus trinta anos de poesia. Como é reedição e já integrado a
Brasília, vale o que eu já disse na orelha do livro.
Teve ainda Subversos, de Wélcio de Toledo. Editado por uma pequena editora de
Goiânia. Edição cuidada para poemas que
não esbarram no medo. O poeta dá evasão ao que está dentro de si. Poderia ter
polido o excesso de banalidade. Confio que isso vá ocorrer nos próximos
títulos. A poesia de Wélcio Toledo não merece se contaminar pelo pieguismo dos
posts das redes sociais e do falso lirismo que atualmente empesta a poesia.
Abaixo versos como este: o fim está
próximo e eu tão longe de você. Parece esta praga das letras das músicas
dos programas de virada de ano. Em frente, Wélcio.
Deixo de abordar o livro “e outros nem tanto assim”, de Alexandre
Pilati. É autor que tem entendimento do processo histórico da poesia. Mas achei
a poesia enrijecida, que não se deixa dizer e contaminar o leitor. Há um
cansaço dessa poesia que se recorta tanto que não é possível compreender de que
vegetal temos na mão a fibra. Mas alguém aí pode me ajudar a entender esse tipo de poesia, que não é de invenção e nem lírica.
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