18 de setembro de 2019

Uma poesia simpática ao musgo

Fiz a leitura dos livros Intimidade (2016) e O Ganges represado (2019), de Daniel Francoy (1979), simultaneamente com a Autobiografia intelectual, de Karl Popper. Assim, as minhas primeiras indagações sobre a poesia do autor de Ribeiro Preto (SP) se apegam a questões relacionadas à necessidade de conhecimento para a prática literária e de interferência da experiência biográfica no processo de composição. Considerando que, na visão de Popper, a Arte não é puramente expressão, mas o desenvolvimento de “habilidade artesanal e outras capacidades” para produzir com ambição, vale indagar se − para tornar-se arte − a poesia de Daniel Francoy é “a expressão de um estado íntimo, de emoção e de uma personalidade”, que revistam a sua obra com completude?

Sem intimidade com as questões da vida cotidiana de Daniel Francoy, torna-se difícil aprofundar-se na análise da interferência das questões biográficas imprimidas em seus poemas, apesar de ele ter escrito um livro sobre as experiências urbanas com a cidade de Ribeirão Preto (A invenção dos subúrbios, 2018), onde o poeta se comporta como “uma espécie nova de flaneur pós-drummondiano”, conforme descrito no portfólio do livro. E, certamente, conhecimento é fator preponderante em sua formação, pois a Advocacia inclui estudos de Ciências Humanas tal como a Filosofia. Sem desconhecer que ele declara que pratica poesia desde os 17 anos, com influências de autores canônicos irrefutáveis (Eliot, Kaváfis, Bandeira, Drummond), cabendo pressupor que é vasta a experiência adquirida através do contato com a obra de outros poetas.


Optar-se pela temática da cidade já é uma decisão, considerando que o poeta do início do Século XXI lida com uma série de dificuldades para definição de uma linguagem diferenciada. Há travas para escolha da temática e da forma. Qualquer caminho pelo qual o escritor se enverede, fica a impressão de que a chegada, como nas corridas de obstáculos ou de Fórmula 1, vai se dar na mesma demarcação. Dentro dessa experiência com a realidade, é necessário conformar-se ao percurso.

Alguma beleza retorna (...)
com os jovens ao redor das piscinas
Faço-me acreditar que ainda é tempo
de replantar e entregar a terra
à ingovernável resistência dos roseirais (...).

Firma-se sobre o poema “Cinzas” a crença de que “não é a podridão” que deve sobreviver. A opção de Daniel Francoy não é só pela cidade, mas, sobretudo pela esperança, na resistência dos roseirais contra a podridão. “Eu vigio a minha esperança”, intercalando gritos de denúncia contra mazelas do presente e do passado (assassinos, violência, napalm). Para essa vigília da esperança, vale-se, talvez em excesso, das raízes drummondianas.

Ainda que não tenha resolvido todos os entraves de seu processo criativo − basta ver a obsessão drummondiana e mesmo a hierarquização excessiva na composição descritiva do cotidiano −, Daniel Francoy torna-se um dos poetas que merece ser observado e ser seguido entre os tantos que tateiam e margeiam o atual percurso da Poesia Brasileira. Ele atua com a ambição de construir, de deixar algo acabado, independentemente de o destino ser previsível, com descarte do que seria só registro e anotação. Conclui seus poemas como artefato artesanal, onde qualquer nervura excedente anularia os arranjos da habilidade aplicada com propósito de apresentação de elemento que veio da realidade e que a ela terá de retornar.

Logo no primeiro poema do livro Intimidade, que pelo título fica deliberada a decisão de não se afastar excessivamente de si e do que envolve seu percurso, os versos “os dias retornam à repetição” e “muitas raízes entre a terra revolvida”, indicam que a composição vai ocorrer a partir da tradição pré-existente no terreno a ser palmilhado (devastada?). A escavação vai se dar – e se dá – em solo ocupado. No entanto, alguns podem plantar desânimo e outros podem decidir por sementes de cânhamo. O problema, então, não é a terra que se escava, mas a forma como autor decide entrelaçar as próprias raízes para sobressair entre as demais.

Na evolução do poeta Daniel Francoy – citemos os poemas “Aurora” e “Claridade” –, o processo de criação se cristaliza em peças espontâneas, inteligentes, dando a impressão de que o tema em si é o menos relevante. O poema é o poema e não a “aurora” ou “claridade”, realizando-se dentro de choques de elementos, “leite negro derramado/sobre um início de luz, sobre/uma pétala oscilante de claridade, /que não cai e não plana (...)”. O artesanal será sempre o mesmo em qualquer produção poética: choque de elementos antagônicos (leite negro/pétala oscilante de claridade), aliterações quase óbvias em ro e ra (claro-escuro da aurora), em s/e (secas, escuras) e ainda alguma repetição (a palavra treva/a palavra sem frutos). O poema com suas respirações internas, em repetições que se alternam com sutil troca de elementos, enfim. Francoy não vem só para dar um oi − obriga-nos a respirar com a sua poesia.

Seguindo a ordem dos poetas canônicos por ele adotados, há a visibilidade de Kaváfis nos versos “os bárbaros que já aqui chegaram/e construíram família”. Discordo, às vezes, da modalidade de notação do tempo adotada por Francoy. É desnecessário, por exemplo, colocar a palavra hoje num verso como este: “Hoje as ruas estão ermas”. A expressão “já aqui” também funciona como uma expressão delimitadora de tempo, inibidora do aumento do significante e da sonoridade do verso. No poema “Cinzas”, poderia ser eliminada a expressão “no final dos dias” para desaparecimento do tom naturalista imprimido à peça poética. De qualquer forma, “hoje” “todos os dias”, “no final dos dias” e “já aqui” não serão um dia ou os dias ou um local específico. Nada se acrescenta a um poema com a datação de uma noite, deste dia, ou qualquer outro acréscimo. Nada se acrescenta ao poema com o verso “Outra noite saímos”, a não ser algo de prosaico. O que se deve destacar, como bem diz Popper, é a habilidade artesanal de tratamento para amplitude do significado daquilo que está sendo abordado ou criado. É importante a eliminação de qualquer elemento que funcione como uma placa num edifício. Mas a atualização da expressão de Kaváfis demonstra a ambição de Daniel Francoy de participar de forma crítica de seu tempo, onde os bárbaros somos nós ou estão instalados “já aqui” ao nosso lado. Se os bárbaros somos nós, nós somos a solução; se eles se instalaram em nossa realidade, eles não são um problema.

Como estamos falando de Kaváfis, importante lembrar que ele sempre reconstruía seus poemas. Mantinha uma bancada em casa, onde os poemas impressos eram mantidos em pilhas soltas. Montava reunião de poemas para distribuição de coleções deles presas por grampos. Quando refazia um poema, enviava-o a quem detinha uma dessas coleções para que fosse feita a substituição. Portanto, é natural que, com a evolução do conhecimento dos aspectos artesanais do processo criativo, o poeta possa adotar método de revisão a qualquer momento, independente de os poemas terem sido publicados. O caso de reformulação de um poema que mais ressalta na poesia brasileira é de “Mocidade e morte”, de Castro Alves, basta ver a valiosa análise de Lêdo Ivo sobre as duas versões existentes. Em estudo, Arnaldo Niskier trata do assunto:

Lêdo Ivo aponta como defeitos de Castro Alves as negligências e limitações, ''que só os poetas manifestamente geniais têm o direito e até o dever de ostentar''.

Manuel Bandeira também elogia em Itinerário de Pasárgada as alterações introduzidas no poema por Castro Alves. Portanto, “os defeitos” podem persistir nas obras dos escritores geniais. Catar feijão é uma forma de matar o tédio e buscar “defeitos” na literatura é uma forma de o leitor crítico testar a própria intolerância. O tempo e a crítica vão dizer se Daniel Francoy é um gênio, com direito a legar defeitos.

No livro de 2019, O Ganges represado, − independente de nele permanecerem momentos bem descritivos da realidade−, Daniel Francoy avança no adensamento das metáforas, na acumulação crítica de eventos históricos e detém-se na organização do espaço do poema para ebulição de alguma vida represada. Não é uma poesia simplesmente feita de leituras de Drummond, Bandeira, Eliot ou Kaváfis como ele declara em entrevista. Os “Poemas paralelos”, “O meu lugar no estado de coisas”, “Foram-se pacificamente nossos mortos”, entre muitos outros, insere Daniel Francoy entre aqueles poetas que tenho buscado pelo ordenamento do poema, por trazer dicção preocupada com o acabamento do texto, a expressão acima da banalidade virtual e de enfrentamento dos desastres impostos pela realidade. Não é suficiente o grito, mas o ordenamento do som, do muro ou da mudez. E ele se esforça e consegue transformar o existente grunhido do real em poesia. Nota-se que além da fruição e domínio do ato de compor, há esforço em ordenar a composição, ajustá-lo à espacialidade e ao equilíbrio dos significantes.
É mais fácil saber quando um poema não se realiza, que um poeta é chato, que um poema é óbvio ou banal, do que identificar um poeta que se insere numa época, com um processo criativo que valida o que produz. Acredito que nem sempre é necessário ser áspero, mas, para enfrentamento da aspereza do tempo atual, o poeta, necessariamente, deve abolir a metáfora chorangueira, mantendo a superfície espinhenta, sem eliminar de dentro algo vivo como o porco espinho. Poetas como Ronaldo Costa Fernandes e Alberto Bresciani cumprem esse papel de construção da aspereza. Alberto Pucheu e Jamesson Buarque cumprem a construção de poemas fechados, tais como verbetes de expressiva enciclopédia. Em Daniel Francoy, há sutilidade na aspereza, tanto que o poeta chega a ser “simpático ao musgo”.

Após a leitura crítica, retornei aos livros em vários momentos e os poemas continuaram a me afetar emocionalmente. Torço para que Daniel Francoy permaneça ativo, evoluindo a técnica artesanal e sempre atento ao seu tempo. A poesia está carecendo dessa franqueza, dessa energia, sem temer absorção de problemáticas cotidianas.

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