Ao preparar o verbete do poeta Jesus Barros Boquady para inclusão na página virtual do Antonio Miranda (www.antoniomiranda.com.br), notei que um de seus poemas certamente terá sido a gênese para a música "Construção", de Chico Buarque, que está no disco homônimo de 1971. O poema de Jesus Barros Boquady saiu em 1964 no livro A Poesia em Goiás, de Gilberto Mendonça Teles. Em ambas peças, a presença integrada do operário com o edifício em construção e a cidade. É claro, no poeta goiano, a cidade ainda é verde, mas, para o compositor paulista, a cidade é mais asfáltica. Fica a análise aprofundada para as autoridades em intertexto (o próprio Gulberto Mendonça Teles é uma delas).
MORTE EM TRABALHO CONSIDERADA
Jesus Barros Boquady
em qualquer que seja a lida
há lances de queda, ritmo
que se perde em segmentos,
choque de aço no crescer
dos edifícios,
polias
fervilhantes,
com as lixas
percorrendo as faces ásperas
da madeira não mais virgem,
nervos,
sangue,
coração
de repente pára a vida,
um gesto que se interrompe,
o corpo tomba no espaço,
os braços vibram na luz
que subtrai silhuetas
e,
no declive,
paisagens
correm enquanto crescendo
o chão aguarda calado
o fruto que se desprende
dos galhos com parafusos
e soldagens de oxigênio
ligados ao tronco alado
do edifício em construção,
que sobe,
buscando as tardes
onde quer que elas se escondem,
pois as tardes vêm de cima,
envoltas em cinza e brasa,
ou só cinza quando chove
há caminhos que se traçam
no aclive, na descoberta
do espaço,
as vigas montadas
na invasão do quase vácuo,
mundo onde existem a brisas,
esses alimentos de pássaros
irmãos em asas dos anjos
os olhos, voltando vêem
lembranças de seus estágios
nos andares construídos,
onde se urdiram os sonhos
nas escaladas do céu,
o terraço,
a sombra,
a fome
sentida na hora do almoço,
a vontade de ir além
do andaime,
no elevador,
tocar as nuvens lá em cima,
olhar a cidade,
chão
em que deslizam os homens
dentro de instantes é a morte,
o baque surdo no asfalto,
a morte melhor que é,
morte em tempo passado,
e já — porque veio — aceita,
por isso considerada
em trabalho, mais nada
os olhos se comprimiram,
ao duro encontro da morte
as retinas se partiram
o verde dos olhos desce
agora mesmo da vida:
derrama-se pelo chão,
confunde-se com a grama
entre cal,
terra e cascalho,
em verde humano,
mas verde.
Jesus Barros Boquady nasceu em Crateús (CE), em 22 de abril de 1929, mas foi em Goiás que passou a maior parte de sua vida e onde cristalizou a parte mais importante de sua obra. Os últimos anos de sua vida foram passados em Brasília, cidade em que se aposentou por serviços prestados à Câmara dos Deputados e em que veio a falecer. Em Goiânia, bacharelou-se em Direito pela Universidade Federal de Goiás e licenciou-se em Letras Modernas pela Faculdade de Filosofia. Na capital goiana, atuou no jornalismo como redator e secretário de redação da Folha de Goiás, redator do Diário da Tarde e do Diário do Oeste, dirigindo suplementos literários desses jornais antes citados e do Jornal de Notícias. Membro da Associação Nacional de Escritores, em Brasília. Foi um dos primeiros a fazer experiências concretistas em Goiás, e parte de sua obra está inserida conceitualmente na Geração de 45, sobretudo pelo seu livro de estréia, que traz traços cabralinos. Trata-se de uma poesia que, inegavelmente, contribuiu, pela ousadia de abarcar avanços estilísticos em prática em outras regiões, para oxigenar com o ar da modernidade a poesia goiana.
Bibliografia: O cego, Bolsa de Publicações da Associação Brasileira de Escritores/seção de Goiás, 1959; Goiânia: sonho & argamassa, Companhia Editora Social Indústria e Comércio, 1959; Gagárin e Shepard/combateremos o sol, s/editora, 1961; Canções do adivinho, 1968; e Romanceiro Goiano, s/editora, 1971.
A poesia é meu território, e a cada dia planto e colho grãos em seus campos. Com a poesia, eu fundo e confundo a realidade. (Linoliogravura do fundo: Beto Nascimento)
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Ainda estamos aqui
Agradeço meus netos po r terem acolhido o convite para assistirmos juntos ao filme "Ainda Estamos Aqui". Fiquei feliz por encontra...
-
A um olmo seco Antonio Machado A um olmo velho, fendido pelo raio, e pela metade apodrecido, com as chuvas de abril e o sol de maio, saíram...
-
O processo de editoração é dinâmico, também. Os livros de poesia devem se aproximar da visualidade das páginas da internet. Papel que reflit...
-
Eu falaria sobre todas as nuvens, sobre todos os poetas, sobre todos os gravetos, da utilidade e da inutilidade de tudo que podemos enxergar...
oi sumido salomão!
ResponderExcluireu digo,mesmo sem saber:não é,mesmo que fosse,não seria...
Boas Maneiras
ResponderExcluirVilém Flusser
Há várias maneiras de fazer uma tarefa. Algumas são boas. A ciência que procura descobrir quais as boas maneiras é chamada "metodologia". A questão é esta: será metodologia uma boa maneira para descobrir quais as boas maneiras? A resposta dependerá da nossa atitude. Por exemplo: podemos dizer que não importa que maneira é boa desde que se cumpra a tarefa. ("Os fins justificam os meios"). Ou podemos dizer que toda tarefa exige uma determinada maneira, e não admite outra. ("O problema contém a solução, ou não é problema"). Ou podemos dizer que a maneira como fazemos algo é o que conta, e não importa o que fazemos.("O estilo é o homem"). Ou podemos dizer que a maneira pode ser julgada apenas depois de cumprida a tarefa. ("São pelos seus frutos que serão conhecidos"). E há outras atitudes.
Uma coisa, no entanto, é certa; embora possam existir múltiplas atitudes quanto às boas maneiras, na prática, todos parecem estar de acordo atualmente: a maneira científica é a única boa maneira de fazer-se algo. Curiosíssimo acordo este. Curiosíssimo por muitas razões, e duas entre elas são estas: A ciência não quer saber o que é bom, uma vez que para ela todas as coisas neutras, nem más nem boas. Quem diz, portanto, que a ciência é uma boa maneira está falando anti cientificamente. E a ciência é a primeira a admitir que a sua maneira de fazer é falha, tanto na prática quanto na teoria. Na prática, porque tenta e erra. E na teoria, porque não consegue justificar-se. Então quem diz que a ciência é uma boa maneira nada sabe a respeito da maneira como a ciência faz coisas. Mas o acordo persiste.
Por quê? Porque obviamente a maneira científica funciona: aviões voam, alto-falantes falam alto, e bombas de hidrogênio matam eficientemente. Mas o que significa "funciona"? Quer dizer isto: é uma boa maneira para cumprir tarefas das quais não sabe se são más ou boas, e das quais não quer saber nada disto. Pede, portanto, que seja inventada uma maneira não científica para dizer quais as más tarefas, e quais as boas. Tal maneira ainda não foi inventada, e seria ela a verdadeira "boa maneira". A sua falta é a chamada "crise de valores". Enquanto não for inventada, nenhuma maneira pode ser boa.
A maneira científica de fazer as coisas prevalece atualmente, e criou dois problemas: estamos esquecendo outras maneiras, ("despolitização"), e fazemos para fazer, sem pensar nas tarefas, (sempre mais automóveis). Acreditamos que os problemas da ciência podem ser resolvidos apenas com mais ciência, cientificamente. Péssima maneira.
Publicado originalmente em Veículo data
--------------------------------------------------------------------------------
Este artigo faz parte de Vilém Flusser: Olhares Brasileiros, uma publicação do CISC disponível em http://projetos.cisc.org.br/flusser