24 de fevereiro de 2012


Ainda que em meio às horas das escolhas
pode advir o desligar dos olhos e dos nervos,
o excesso de luz a ressecar as ervas.
Ainda que a fartura transborde as mãos,
utensílios vem lutar em nossas faces.
O envelope rasgado, a volúpia da água.
A renegada palavra que se reabilita,
a reabilitada confiança de volta ao conflito.
No momento que temos a satisfação do pássaro,
do louco na sacada a traquinar feliz. Feliz.
Caem, não só nestes momentos,
ainda naquilo que mais pomos
os nossos crestados pés, o odor do filho,
o volume dos seios no branco do brim,
caem as nossas vigas, as pálpebras de nossa mãe,
as nossas esquadras a que ainda nem fomos.

22 de fevereiro de 2012

Dia intraduzível
Quarta-feira de Cinzas amanhece
com o silêncio na rua
Destes silêncios que apagam
de nossos ouvidos a música
construída com trapos
socos e pontapés
Do silêncio emergem
a música dos pássaros e a ebulição da água
A calçada vai avançando limpa e desobstruída
Vem a certeza de que a rua
volta a ser dos velhos e das crianças
As amizades voltam inteiras, o pólen
pronto para a abelha
que chegarão com o sol
Para continuar a servir a amada
a taça ficou inteira
e enche-a g
ot
a a
GO
ta
a confiança

21 de fevereiro de 2012

Lamentos de Menon por Diotima

Duas estrofes do hino "Lamentos de Menon por Diotima", de Holderlin, na tradução de Paulo Quintela. A primeira e a última. Toda tradução faz opções. Há uma tradução espanhola que talvez fosse ideal para o primeiro verso, que para o português ficaria assim: "Em vão vou todos os dias em busca de mudança/calam minha fala todas as trilhas da terra". No terceiro, seria "cimos gélidos", pois no romantismo - e principalmente nesse poema - um clima de frieza. Mas, no entanto, é um dos poemas que mais me "gelam o coração".


1

Todos os dias saio, sempre à busca de caminho,
   Há muito interroguei já a todos os da terra;
Além dos cimos frescos, todas as sombras visito
   E as fontes; erra o espírito pra cima e pra baixo,
Pedindo sossego; assim foge o bicho ferido pros bosques,
   Onde outrora ao meio-dia repousava seguro à sombra;
Mas o seu leito verde já não lhe restaura o coração,
   Lamentoso e sem sono o aguilhoa por toda parte o espinho.
Nem do calor da luz nem do fresco da noite vem ajuda,
   E em vão banha as feridas nas ondas do rio.
E  assim como debalde a terra lhe oferece a erva alegre
   Que o cure, e nenhum dos zéfiros acalma o sangue a ferver,
Assim, queridos! assim a mim também, parece, e ninguém
   Poderá tirar-me da fronte o sonho triste?

9
Assim, oh! celestiais! vos rendo graças, e enfim
   A prece de novo abranda o peito do cantor.
E como quando com ela estava no monte soalheiro
   Fala-me do templo um deus e me dá vida.
Quero viver, sim! já verdeja o campo! como de lira santa
   Vem um apelo dos montes argênteos de Apolo!
Vem! Foi como um sonho! As asas que sangravam estão
   Curadas já, rejuvenesce por toda parte a esperança!
Ainda há muito, muito de grande a descobrir, e quem
   Assim amou, vai - tem de ir! - pela estrada dos deuses.
E acompanhai-me vós, horas sacrais! vós, graves,
   Juvenis! Pressentimentos santos, ficai vós conosco,
Preces devotas! e vós, entusiasmos, e vós todos,
   Bons gênios, que gostais de acompanhar os que amam;
Ficai conosco até nos encontrarmos no solo comum,
   Lá onde os venturosos todos descem de bom grado,
Lá onde as águias estão, os astros, os mensageiros do Pai
   E as Musas, lá onde vêm os heróis e as amantes,
Lá, ou aqui mesmo, sobre uma ilha orvalhada
   Onde os nossos esperam, flores reunidas em jardim,
Onde os cantos são verdade, e as Primaveras são mais tempo belas
   E de novo um ano da nossa alma começa!

RETRATO, poema de Antonio Machado

Traduzi para meu consumo o poema "Retrato", do espanhol Antonio Machado. Trata-se de um dos poetas de minha predileção, assim como...