1 de maio de 2019

Poema sem título

Não persigo a palavra exata
ou tão afiada que parta uma laranja.
Emiti-la seria extraviar o que sou,
cortante seria destruir um talo.
Eu mesmo não me compreendo,
e se rende a areia à água,
ambos preenchemos a vala.
Eu mesmo me contradigo,
eu mesmo reformulo o que sei
e a dúvida ainda me avassala.

Quanto mais a torço e distorço
a palavra não me livra de outra fala.
Os lábios não calam, perseguem-na
quanto mais se exibe entre as talas.
Repreendo-me sempre que não sei,
sempre que a definição traz outro lado.
O que surpreende a laranja
é que nada aconteça. Balcão de feira,
melaço febril, bico de pássaro.
A sacola, as mãos de uma Natália.

A laranja aguarda ser exposta,
ser surpreendida por um fungo,
por um abrigo na cesta, na taça.
Estendem-se à minha frente as conexões
e me surpreende a incerteza
de quem entrará pela sala.
Não é a escolha que me define,
se nem posso ser laranja ou fungo.
Tenho de exigir uma surpresa
que saiba de antemão colher num galho.

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