Volto sempre a Harold Bloom para
ativar a forma de pensar e de ordenar as escolhas de leitura e, também, para
que a mente não adormeça no ócio. Vejo interpretação em tudo que deposito o
olhar, por isso Sinésio Dioliveira sinalizou que não fotografo, pois tiro o
olhar do objeto. Preocupo-me com o que danifica a prática poética de nosso
tempo. O homem atual só reconhece o que molda em seu desejo, e desmerece o que
o outro deseja ver. Bloom me socorre na questão com o conceito de sublime, de
Longino. O conteúdo de uma obra tem de nos provocar estranheza. Ocorre que não
é uma estranheza por ser “estranho”, mas de espanto no espírito. Um dos versos
que mais gosto é de Boris Pasternak: viver
é algo mais do que atravessar um prado. Assim vejo numa tradução. Talvez
pudéssemos simplificar a tradução: viver
não é simplesmente atravessar um prado. Mas o que tem de estranheza
nisso? Não é belo um prado em si e mais belo ainda, simplesmente, por hauri-lo?
A estranheza, pelo menos assim vejo, é ser levado a se sentir fora da travessia
do prado. Se viver fosse estar só dentro do prado, o verso não teria mais
nenhum motivo de existência. Não estamos permanentemente dentro de um prado e,
se estivéssemos, a vida seria assaltada por uma enorme pequeneza de
possibilidades. Só teria a possibilidade do prado. Deitado em minha sala, eu
diria que
Viver é estar com a
porta aberta
para entrar o vento com cheiro de vento
Mas e o cheiro do prado? Do prado
da beira do rio Calvo, de uma distante Rússia após algum degelo? A poesia não é
dizer o que está posto no verso. É pegar o real e criar algo além do
ideológico, como reconhece Bloom: o
estético demanda profunda subjetividade e está além do alcance da ideologia. Então por que ele
diz que falta à atualidade a presença de poetas como Emerson e Whitman para
interpretação do mal-estar da cultura? Tenho algumas interpretações para a
questão. Primeiramente eu concordo com a proposta de Bloom — no mundo da
complexidade moderna, foi multiplicado o campo de ação do homem e o poeta não
consegue entrar em todas as inserções da inovação. Mas, então, por que o poeta
deixa de compreender pelo menos algum ângulo do seu tempo para que possa
compreender a si mesmo, sem confusão do que é a lírica? Não sou lírico só
quando me fotografo. A lírica ocorre com sucesso quando o poeta fotografa com
um olhar pessoal e de inteligível estranheza. O poeta — na minha parca compreensão
— deixou de se submergir no prado, de interagir com
ele para que possa se expressar com essa experiência. É necessário ter um
trabalho braçal com o prado para depois ter um
trabalho corporal com o poema. Eu diria mais: teme ser ideológico — não no
sentido partidário, mas de assunção de posicionamento diante das desolações de
seu tempo — para depois estar imbuído de subjetividade expressiva. Só sou
autêntico quando penso por mim mesmo, se meu eu corporal não se referencia pelo
que encontra após o prado. Nada que expresso transportará estranheza até o
outro. A poesia exige a expressão da libido do real absorvido pela
individualidade do poeta. Com poesia, somos o cinamomo.
Viver é abrir a
porta para entrar o vento
e atravessa a sala o prado perfumado
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Salomão Sousa sente-se honrado com a visita e o comentário