5 de maio de 2019

PRADO


Volto sempre a Harold Bloom para ativar a forma de pensar e de ordenar as escolhas de leitura e, também, para que a mente não adormeça no ócio. Vejo interpretação em tudo que deposito o olhar, por isso Sinésio Dioliveira sinalizou que não fotografo, pois tiro o olhar do objeto. Preocupo-me com o que danifica a prática poética de nosso tempo. O homem atual só re­conhece o que molda em seu desejo, e desmerece o que o outro deseja ver. Bloom me socorre na questão com o conceito de su­blime, de Longino. O conteúdo de uma obra tem de nos provocar estranheza. Ocorre que não é uma estranheza por ser “estranho”, mas de espanto no espírito. Um dos versos que mais gosto é de Boris Pasternak: viver é algo mais do que atravessar um prado. Assim vejo numa tradução. Talvez pudéssemos simplificar a tradução: viver não é simplesmente atravessar um prado. Mas o que tem de es­tranheza nisso? Não é belo um prado em si e mais belo ainda, simplesmente, por hauri-lo? A estranheza, pelo menos assim vejo, é ser levado a se sentir fora da travessia do prado. Se viver fosse estar só dentro do prado, o verso não teria mais nenhum motivo de existência. Não estamos permanentemente dentro de um prado e, se estivéssemos, a vida seria assaltada por uma enorme pequeneza de possibilidades. Só teria a possibilidade do prado. Deitado em minha sala, eu diria que

Viver é estar com a porta aberta
para entrar o vento com cheiro de vento

Mas e o cheiro do prado? Do prado da beira do rio Calvo, de uma distante Rússia após algum degelo? A poesia não é dizer o que está posto no verso. É pegar o real e criar algo além do ideológico, como reconhece Bloom: o estético demanda profunda subjetividade e está além do alcance da ideologia. Então por que ele diz que falta à atualidade a presença de poetas como Emerson e Whitman para interpretação do mal-estar da cultura? Tenho algumas interpretações para a questão. Primeiramente eu con­cordo com a proposta de Bloom — no mundo da complexidade moderna, foi multiplicado o campo de ação do homem e o poeta não consegue entrar em todas as inserções da inovação. Mas, então, por que o poeta deixa de compreender pelo menos algum ângulo do seu tempo para que possa compreender a si mesmo, sem confusão do que é a lírica? Não sou lírico só quando me foto­grafo. A lírica ocorre com sucesso quando o poeta fotografa com um olhar pessoal e de inteligível estranheza. O poeta — na minha parca compreensão — deixou de se submergir no prado, de intera­gir com ele para que possa se expressar com essa experiência. É necessário ter um trabalho braçal com o prado para depois ter um trabalho corporal com o poema. Eu diria mais: teme ser ideoló­gico — não no sentido partidário, mas de assunção de posiciona­mento diante das desolações de seu tempo — para depois estar imbuído de subjetividade expressiva. Só sou autêntico quando penso por mim mesmo, se meu eu corporal não se referencia pelo que encontra após o prado. Nada que expresso transportará estranheza até o outro. A poesia exige a expressão da libido do real absorvido pela individualidade do poeta. Com poesia, somos o cinamomo.

Viver é abrir a porta para entrar o vento
e atravessa a sala o prado perfumado

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