18 de agosto de 2023

A experiência da poesia de Alexandre Pilati


Sóter, Alexandre Pilati, Chiquinho e Salomão Sousa 


Ao contatarmos os textos poéticos produzidos nas duas últimas décadas do Século XX, até o início da terceira década do Século XXI, podemos constatar que a poesia vive profundos dilemas, que carecem de respostas definidoras e alcance de processos de execução convincentes. Não só de processos convincentes e de respostas definidoras, mas carece ainda de enfrentamento crítico pelo próprio corpo de autores contemporâneos, pois fica a impressão que, abandonados pelas parcas, são despertados pela atração do canto fácil da falsa sereia virtual.

           Primeiramente, podemos levantar alguns questionamentos de ordem operacional. É suficiente o conhecimento da tradição? Os poetas contemporâneos estão interligados aos poetas do passado? A floresta de alheamento da realidade tem sido incorporada para produção de metáforas legítimas? O poeta tem procurado entrar em contato com a técnica das épocas que o antecederam ou adotam procedimentos que nascem solitariamente dele mesmo? O caráter egocêntrico da era digital – com suas corrosões linguísticas e de eliminação da alteridade social - está contribuindo para produção de textos poéticos descartáveis? A poesia ainda é uma linguagem de chamamento social e de geração de espetáculo lírico, de deleitamento no ato da decodificação da leitura?

           Para abordagem do problema, podemos nos valer de dois termos latinos, que guardam semelhança entre si, mas que remetem à alguma estrutura construída que se mantém de pé. A edificação (aedificatio) envolve escolhas, definições, áreas, temas, enquanto a construção (constructio) é o ato de usar os materiais escolhidos para a montagem do produto. Não é à toa que o primeiro termo é fartamente empregado em diversas áreas (edificação moral, edificação espiritual), representando os princípios que irão constituir o processo, tornando-o sólido, convincente e confiável.

           Mas entra nisso um quesito fundamental: só é possível o uso de materiais que são de conhecimento e domínio daquele que se propõe a construir, que foram por ele experimentados e que possam satisfazer necessidades e exigências de uma época. Os poetas têm feito escolhas e buscado experiências para a construção de suas obras? Quais materiais estão sendo escolhidos para solidez da poesia atual? Há exigências externas para a apresentação das propostas poéticas contemporâneas?

           Teorizar também não constrói a fábrica de poemas. Não adianta a apresentação de formas (ô) – nem há uma loja que as comercialize –, pois os materiais de cada autor nem sempre se conformam a elas e muito menos se enquadram às formas (ó) disponíveis, se ele (autor) pode – e deve – moldar o próprio desenho que lhe aprouver para desenformar o produto poético que conseguiu montar para a exposição.

           Para a fabricação de poemas (vivemos no mundo de produtos estandardizados, de exigências de formas unificadas), o autor, no ato de aedificatio, terá de esforçar-se para aproveitamento do material incorporado em si mesmo, mesmo sob risco de construir estruturas desabáveis.

           Recorrendo aos dois últimos títulos produzidos e publicados por Alexandre Pilati, é possível constatar essa volatilidade entre temas e formas (ou aglutinação de formas) da produção poética atual. É certo que há uma prevalência da lírica, independentemente de qualquer outra experiência, seja ela de vanguarda ou de uma mitologia aprofundada no classicismo.

           Por se tratar de autor autóctone de Brasília, é de se pressupor que Alexandre Pilati esteja fisicamente incorporado de materiais urbanos modernos, de convivência com uma vegetação da savana retorcida do Planalto Central, tudo permeado de amplo espectro de divergências sociais e políticas. Portanto, Pilati é um filho da urbis moderna ilhada na miséria, mas com trânsito por caminhos de reformulado meio ambiente. Sua poesia só pode transitar ungida da experiência com esses materiais.

           Não é autor neófito, pois já publicou cinco livros de poemas e outros mais de estudos literários, além de atuar como professor universitário, com passagem como professor visitante na Università degli Studi di Perugia, Itália (a grafia no original dá um tom neobarroco à narrativa biográfica de um autor). Currículo esse que o aproxima do debate e da experiência da tradição e da prática da poesia no mundo contemporâneo.

           Apesar de não centrarmos atenção somente no livro Sob linóleo vermelho (2020, editora Urutau), captamos pela epígrafe de Louise Glück, em que há procura de inseminação de alguma coloração no universo poético, em que pese o processo ser individual e disforme. Constata-se que a poesia transita por um território misshapenn, ou seja, disforme, deformado. E por que não desmanche, desmanchado?

Acabou-se a forma, então? Pilati, no poema de abertura desse poemário, chega a propor que se “Escreva poemas/em um caderno/cujas folhas se soltem facilmente”, e que se “Publique poemas/em livros que facilmente/se desfaçam”. Kavafis acumulava os poemas soltos sobre uma bancada e a cada amigo oferecia um maço deles sem acabamento em livro. Inclusive enviava para substituição a folha do poema ao qual impusesse alguma alteração. Portanto, não vivemos em um mundo só disforme, desmanchado, mas sujeito a intervenções cirúrgicas (que podem apresentar ranhuras e outros aspectos deformados). As formas são ajustadas para satisfação pessoal, inclusive a plástica física dos corpos. É passível de indagação: o poema não seria objeto disponível de intervenção – para que o satisfizesse – pelo leitor? Pilati chega a propor sugestão nesse sentido (Copie!/Despiste,/desista…). Nos direitos do leitor, de Daniel Pennac, consta que o leitor pode pular páginas, não ler (desistir de ler), mas não consta que ele possa destruir o livro. O livro ainda merece o altar do sagrado?

           Nesse livro Sob linóleo vermelho, de questionamento do ato em si da escritura, há referências a Jorge de Lima (A túnica inconsútil), ao professor e poeta Hermenegildo Bastos, a Manuel Bandeira (A estrela da manhã), a Kafka (vermes insetos), entre outros. Há uso do poema processo em “Cancelamento” - aí vem o grilo/pula  pula   pula e     pluma), talvez a mais plástica das experiências de Pilati nos dois livros agora em foco. Mas, o melhor, é que tudo é permitido num poema que não será lido (verso de Pilati). Talvez por isso a poesia contemporânea possa ser (e é) tão permissiva (e assim evitar a remissão ao verso livre).

           Dentro dessa convocatória de que tudo é permitido no processo de construção poética, e considerando que cada um dos poetas põe em destaque um poema para abordagem da própria fabulação biográfica, é oportuna a abertura de um parêntese nesse texto para registro da relevância do estilo do poeta Djami Sezostre – poeta que chega ao ápice de desmanche do processo linguístico. Ele consegue a abolição do significado, chegando à desfaçatez de conseguir dar existência ao verso só com a sonoridade ao optar pela ocorrência da junção das letras de forma aleatória. A estrela chorou rosas (2023, editora Patuá), ao consolidar as técnicas de desconstrução das palavras e das frases por Djami Sezostre, é um livro de enrubescer a face da poesia brasileira. De uma espontaneidade feroz sem ferocidade, pois começa com um poema em que desenvolve currículo criativo onde a fábula arrasa o real e termina com a parturiente técnica disjuntiva de sílabas, palavras e frases. Cada um leia o que consegue inventar. Jesus escrito esfaceladamente dentro de mim. Assim eu leio Djami Sezostre.

Para complementar essa aproximação de Pilati da tradição, é bom ressaltar que o livro traz vários poemas que se interligam com a Poesia Marginal (“Coxinha”, “Acordo de cavalheiros”, “Na unha”, “Nova política”) ou aforística (“Arte”). Portanto, reflete no poemário alguma tradição (aquilo que se produziu antes de o autor manifestar-se na construção de numa obra) bem como a ambiência de circulação do poeta (congêneres da Poesia Marginal, o ambiente urbano dos crachás e filas, Galdino). Ao moldar-se à diversidade, Pilati completa essa falta de alinhamento a um único processo de construção com o processo crítico (Nos palácios de Brasília, arrotam), com a partição incomum dos versos e com a aproximação até da poesia de cordel (quem pode anular/a vigência do caos/o império do não/a pedra angular/dessa revolução).

           O livro Tangente de cobre (2021, editora Laranja Original) foi contemplado, meritoriamente, com o prêmio Candango. Como na obra anterior, o autor firma-se em tradições claras ao fazer homenagem a Maiakovski, Daniel Defoe, Karl Marx, entre outros. Só que, agora, o poeta se desgarra do questionamento da própria poesia, do instantâneo da Poesia Marginal, para avançar um pouco mais para o ordenamento da invenção. Chega, em alguns momentos, a abolir a pontuação e as maiúsculas. Em outros lugares, recortes rápidos, com andamento obtido pela própria pontuação (Organizar./Dar a um e outro o denso/da História. A todos, esse denso./Ordenar. Classificar. Sistematizar.) Não há um local certo de recorte. Como em Djami Sezostre, o verso não merece um limite, pois é o disforme que organiza a construção. Chega a propor um soneto, mas esculhamba a forma com a desordem do real, no revirar do lixo. E no lixo não é possível encontrar nada inteiro, consonante, rima. Vivemos o tempo do lixo social, do lixo político? A poesia pergunta, sem propor respostas às claras.

Em declaração a um entrevistador, Pilati afirmou que o livro traz “poemas do tempo de crise”. Mas toda arte não compartilha de uma crise? Só a ausência de desenvolvimento econômico comfirma que uma época está em crise? Diante da declaração do autor, essa questão merece ser posta em avaliação. O que ocorreu em 2018 – época de composição dos poemas do referido livro – que aparece, tangencia ou submerge no teor do livro? O passado valoriza o presente? Quanto vale, agora, esta mesa? – afirma Pilati em um dos versos. Só o que tem preço sobrevive à crise, sopervalorizando-se? Quanto vale a poesia para escapar da crise? Para haver crise é necessário existir campos de batalha?

           O material contido em Tangente de cobre enobrece a poesia deste início de Século XXI pelo que expõe e questiona. Como conhecedor da poesia drummondiana, com a experiência do seu tempo e das trilhas da poesia, Pilati consegue emular temas contemporâneos e dilatar a composição sem arrogância ou perda de foco. Não há um poema na forma de advertência ou carta endereçada a um outro. Tão drummondiano que põe o boi para sambar. Enfim, Alexandre Pilati consegue cumprir a proposta de dialogar com o seu tempo, eliminar a crise que o acomete e subverte a construção de seus poemas. Não há crise no corpus da escrita de Pilati – pelo menos é o que se pode apurar pela leitura de seu livro. A poesia cumpre o efeito sanitário de apresentar um tempo sadio como o álcool gel que faz a assepsia para que o homem possa transitar livre de contaminação.  

           Mas onde estão as respostas a todos os questionamentos iniciais? Diríamos que as propostas ainda estão sendo postas por Alexandre Pilati, Djami Sezostre e todo o espectro de poetas questionadores desse tempo. A melhor resposta é atuar como Alexandre Pilati vem buscando em seu processo de criação. Abordar o boi e a cachorra Baleia, que ele viu ou imagina ao pé do muro, mostrar aquilo que outros ignoram, misturar mundos que não se conhece. Repetir (drummondianamente) também é uma resposta quando as questões voltam a ser as mesmas de tempos anteriores. Eliminar o significado e deixar só a sonoridade – outra proposta de resposta.

           Amarrar um louco é uma resposta. Cortar um nabo é uma resposta. Juntar a cacaria é uma resposta. Inserir situações desconhecidas ao currículo é uma resposta. Uma cachorra morta é uma resposta. Na impossibilidade de formas novas, aglutinem-se as mortas.

Em último caso,

escreva um poema.

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