Mas ser amado é poder ser útil ao amor.
Por exemplo, pregar pregos onde o amor não quer se fixar,
coçar onde os piolhos estragaram o amor.
Por exemplo, ser útil com o calor onde o amor se esfria,
ser belo onde o amor vai com o fluxo das rugas.
Mas ser amado sem comer o gosto de pedra.
O gosto de amora e jambo também não é o gosto
e a utilidade que o fruto leva para o beijo.
Ser útil ao amor, por exemplo, com a carnal das mãos
sobre o trabalho de aliviar a velhice do amado.
Mas ser amado não é só à espera do verniz
da bengala. Tem de esvaziar antes os ossos,
soltar dos portos tantas embarcações de outros
que não ficarão para assistir o que o beijo
gasta de jambo e carne, antes da partida.
A poesia é meu território, e a cada dia planto e colho grãos em seus campos. Com a poesia, eu fundo e confundo a realidade. (Linoliogravura do fundo: Beto Nascimento)
18 de dezembro de 2016
O que me enriquece
Quando terminamos um ciclo, seja de tempo ou de percurso entre um ponto e outro da territorialidade de existirmos, cumpre-nos avaliar o que fortalece ou empobrece a nossa existência. O que me empobrece está na minha impossibilidade de contribuir para que em todas as casas exista a ereção do espaço para que as pessoas construam a consciência do que são, através das marcas da cultura. Nunca me esqueço de uma casa de um bairro que esteve um dia em meu percurso. Atravessei-a, pois o único percurso era passar por dentro daquela casa. A família tinha apenas um banco em que sentar, e possivelmente só lhes resgatassem ficar silenciosos ao lado um do outro. Voltei neste ano a encontrar pessoas assim sentadas, sem poder contar com nenhuma compressão, de outros, de si, sem conseguir pensar por si o que está a acontecendo com elas. Mas sabem que estão amarradas a uma impossibilidade amarga. O maior desastre é não conseguir compreender a realidade que foi construída em volta de si. Deprimo-me quando colido com a realidade dessas pessoas. E tenho de colidir já que estão inscritas no meu percurso.
O que me enriquece está na amizade dos homens e dos livros. Neste ano, foi importante para a minha alegria que o amigo Wil Prado, enfim, publicasse o seu primeiro romance, e que tenha o autor me cedido a honra de apresentá-lo. Romance esse que mereceu um e-mail generoso de Raduan Nassar. Pude ainda ler as duas grandes sagas de Homero. Sai assustadoramente enriquecido. Não serei mais o mesmo e muito menos a minha poesia. Dos muitos livros de poesia lançados no Brasil, e nem tive acesso a todos, foi maravilhoso conhecer a poesia de José Inácio Vieira de Melo, de contatá-lo corpo a corpo. E, enfim, o susto de encontrar a perfeição no livro Zut, de Djami Sezostre, pseudônimo de Wlilmar Silva. O poeta alcançou se descolar da impossibilidade da linguagem. Tudo é possível, nele, com naturalidade. Ainda, entre tantos encontros que me tornaram um pouco mais completo, está conhecer, não in loco, mas em livro, a escultura L'impossible, de Maria Martins. Não tenho nenho intenção de ir aos EUA, mas essa peça está em Nova York, mas possivelmente não irei lá. Vale a fotografia da peça. Aqui vemos a antropofagia de sermos homens, esse destino de nos sugarmos com a nossa agressividade, com a nossa incompletude, com a nossa fome do outro. Ela estará gravada sempre em mim, pontiagudamente.
Assim, vou terminando meu ano, com meus enganos, e com meus encontros com a perfeição.
Já preparo o próximo ano. Inicialmente, lerei toda a poesia de Herberto Helder. Depois, penso em reler A Montanha Mágica, e Thomas Mann. Mas qualquer outra imagem que estiver em meu percurso, seja um homem apequenado em sua casa, o jambo, a formiga pisada por uma garotinha, a chuva que voltará a se preparar numa próxima nuvem, será isso que me enriquece.
Só nos enrique aquilo que construímos com consciência. Se apossamos do que poderia enriquecer a capacidade do outro de compreender a realidade, de dela participar, ficamos, sim, prisioneiros de nossa consciência.
Não sejamos prisioneiros de nossa consciência, em 2017. Para isso, basta desempenharmos fielmente a obra, a missão que nos coube dentro da sociedade.
O que me enriquece está na amizade dos homens e dos livros. Neste ano, foi importante para a minha alegria que o amigo Wil Prado, enfim, publicasse o seu primeiro romance, e que tenha o autor me cedido a honra de apresentá-lo. Romance esse que mereceu um e-mail generoso de Raduan Nassar. Pude ainda ler as duas grandes sagas de Homero. Sai assustadoramente enriquecido. Não serei mais o mesmo e muito menos a minha poesia. Dos muitos livros de poesia lançados no Brasil, e nem tive acesso a todos, foi maravilhoso conhecer a poesia de José Inácio Vieira de Melo, de contatá-lo corpo a corpo. E, enfim, o susto de encontrar a perfeição no livro Zut, de Djami Sezostre, pseudônimo de Wlilmar Silva. O poeta alcançou se descolar da impossibilidade da linguagem. Tudo é possível, nele, com naturalidade. Ainda, entre tantos encontros que me tornaram um pouco mais completo, está conhecer, não in loco, mas em livro, a escultura L'impossible, de Maria Martins. Não tenho nenho intenção de ir aos EUA, mas essa peça está em Nova York, mas possivelmente não irei lá. Vale a fotografia da peça. Aqui vemos a antropofagia de sermos homens, esse destino de nos sugarmos com a nossa agressividade, com a nossa incompletude, com a nossa fome do outro. Ela estará gravada sempre em mim, pontiagudamente.
Assim, vou terminando meu ano, com meus enganos, e com meus encontros com a perfeição.
Já preparo o próximo ano. Inicialmente, lerei toda a poesia de Herberto Helder. Depois, penso em reler A Montanha Mágica, e Thomas Mann. Mas qualquer outra imagem que estiver em meu percurso, seja um homem apequenado em sua casa, o jambo, a formiga pisada por uma garotinha, a chuva que voltará a se preparar numa próxima nuvem, será isso que me enriquece.
Só nos enrique aquilo que construímos com consciência. Se apossamos do que poderia enriquecer a capacidade do outro de compreender a realidade, de dela participar, ficamos, sim, prisioneiros de nossa consciência.
Não sejamos prisioneiros de nossa consciência, em 2017. Para isso, basta desempenharmos fielmente a obra, a missão que nos coube dentro da sociedade.
2 de novembro de 2016
Filme de Creadle sobre Miles Davis
Assisti só agora em 02.11.2016 a cinebiografia "Miles Ahead", que ainda não estreou no Brasil. Espero que o filme não denigra a trajetória de Miles Davis, pois Creadle preferiu fazer um filme policialesco e não jazzístico. O que aconteceu com Miles Davis, tenho certeza, não teve a a corrida policialesca suspensiva que o filme procura caracterizar. Eu gostaria de ver o Miles Davis criativo, gênio, e não a construção de um homem derrotado. Acho que a família e o cineasta estavam focando apenas a grana que poderiam ganhar. Poderiam honrar a trajetória de um gênio. Quando li sua Autobiografia não enxerguei este homem estúpido e derrotado. Um homem assim não teria deixado o legado que está aí disponível a todos. Não teria contribuído para mudança dos rumos da música e para a ascensão de tantos nomes, muitos deles ainda na ativa. Em momento algum o filme não mostra se é Wayne Shorter ou Herbie Hancock que entra na história. Se Creadle deseja dar uma improvisação ao filme ela não corresponde ao Miles Davis construtivo e à música verberante de um astro de iluminação eterna.
28 de outubro de 2016
O gênio dos mestres
Estou fazendo postagens demais, mas sempre está ocorrendo alguma coisa. É a chuva, é o pássaro, é o besouro atravessando a janela em busca de luz. Mas fui ao cinema assistir "O gênio dos mestres", cinebiografia de Max Perkins, um dos maiores editores norte-americanos, responsável pela edição de obras de Hemingway e Fitzgerald. O filme trata da relação dele com Thomas Wolfe, romancista ainda não traduzido por aqui, já que traduziram apenas contos dele. Tenho dois romances em espanhol. Vou ver se leio um nas férias de novembro. (Por falar nisso, terminei "A cidade de Deus", de Santo Agostinho. Deixou a minha cabeça em barafunda.) Em resumo, o filme merece ser visto. Drama comovente, com trilha jazzística limpa e justa, não muito da época, mas belíssima, ótimas referências à poesia e ao processo de organização de um romance. Agrada muito a quem é ou deseja ser escritor, e comove o expectador amante da arte.
18 de setembro de 2016
9 de agosto de 2016
Gracias ao amigo Antônio Miranda pela publicação na internet da plaqueta de poemas meus editado pela Casa do Poeta Peruano, para o evento realizado em Chota, naquele País. Resonancias
1 de junho de 2016
Júlio César Polidoro
COLETA
A Salomão Sousa
Assina a ruga
essa rude instalação:
no corpo alquebrado
o rosto precário
e a rua
repleta de buracos.
E avenidas cortam,
novas, ao rincão
da pele, antes plana,
uma sucessão de quebra-molas.
Mil atalhos surgem
desde os cílios
e ladeiras íngremes
entornam
um rio de lágrimas
dos olhos.
Eis o tempo
e urge no meu rosto
a vital parcela do imposto
que esse mesmo tempo
agora cobra.
A Salomão Sousa
Assina a ruga
essa rude instalação:
no corpo alquebrado
o rosto precário
e a rua
repleta de buracos.
E avenidas cortam,
novas, ao rincão
da pele, antes plana,
uma sucessão de quebra-molas.
Mil atalhos surgem
desde os cílios
e ladeiras íngremes
entornam
um rio de lágrimas
dos olhos.
Eis o tempo
e urge no meu rosto
a vital parcela do imposto
que esse mesmo tempo
agora cobra.
27 de maio de 2016
Notas de leitura - Eça de Queiroz
Para
Jacinto Guerra
Não sei aquilatar quanto de cinzas ainda ocupa minha
visão para ultrapassar as multifaces do romance A cidade e as serras, de Eça de Queiroz. Li na juventude O crime do padre Amaro e, há uns
três anos, Os Maias. Não sei
quando fiz a primeira leitura de O
Mandarim, que foi refeita agora com outro olhar, mas que sempre me abriu
fundas estradas na imaginação, pois é impossível sairmos ilesos do terreno das
fábulas.
Acredito
que, em A cidade e as serras (não
sei por que ao tratar dessa dicotomia põe a cidade no singular e as serras no
plural, pois não é só Paris, no final do século XIX, que expressa os efeitos da
industrialização), Eça de Queiroz faz um ajuste de contas com o sentimento de
desconforto do seu tempo e também com as angústias pessoais. Constrói fabulação
que irá contrapor a Schopenhauer e também a construção da ambiência da amizade
e da família para enfrentar a história pessoal. Eça foi criado pelo avô como se
fosse um bastardo depois de renegado pelos pais que o conceberam antes do
casamento.
O
personagem principal de A cidade e
as serras, Jacinto, é construído na voz de um segundo personagem, o
narrador José Fernandes. Ambos herdeiros de famílias rurais portuguesas, que
vivem em Paris na primeira parte do romance, imersos na futilidade do inútil
conforto da vida moderna, que, pela nascente industrialização, sabe apenas
construir caixas e caixas de objetos que podem ficar abandonadas no meio do
caminho sem apresentar nenhum prejuízo ao percurso dos seus donos. Enfim, esses
personagens cansam da metrópole e precisam retornar às origens para retomar a
originalidade espontânea da natureza, mesmo quando ela ruge tempestades sobre
os inquilinos da terra.
Desde
a juventude, nunca tive dificuldade com o estilo ímpar de Eça, num português
exemplar que chega a ser chato, parecendo arcaico. Se vivi num mundo arcaico,
quase colônia perdida de portugueses antigos no perdido interior de Goiás, a
linguagem arcaica me é familiar. Em A
cidade e as serras, estranhou-me a o diálogo monossilábico, mas também
isso, no estilo de Eça, também me é familiar, pois na família goiana arcaica o
diálogo não é expansivo, se as expressões da fala são notas pontuadas, que
denotam apenas a confirmação presencial do fato. Pois então. Veja este diálogo
do romance:
Jacinto adiante, na sua égua ruça, murmurava:
- Que beleza!
E eu atrás, no burro de Sancho, murmurava:
- Que beleza!
Em
três outros momentos, Eça me emocionou ao eriçamento da pele.
No
instante em que o narrador vai denunciar a exploração do homem do campo,
aparece o movimento socialista nascente na época, que certamente afetou o
romancista. A “Civilização reclama insaciavelmente regalos e pompas, que só
obterá, nesta amarga desarmonia social, se ao Capital der ao Trabalho, por cada
arquejante esforço, uma migalha ratinhada”. Até os grandes escritores cometem
os seus cacófatos (por/cada), mas não erram na notação do real. E, adiante, o
burguês rural, indiferente ao que ocorre na sociedade, irá descobrir e atuar
para se redimir perante a classe trabalhadora.
Para
o narrador que foge do romantismo e do realismo, procurando ingressar numa
radicalidade moderna, Eça tem de fazer sua entrada na natureza enfrentando esse
rito de passagem. Num mesmo parágrafo se mantém romântico (Por toda parte a
água sussurrante, a água fecundante...), ou se mantém simbolista nas repetições
(Brancas rochas, pelas encostas, alastravam a sólida nudez do seu ventre polido
pelo vento e pelo sol; outras, vestidas de líquen e de silvados floridos,
avançavam como proas de galeras enfeitadas); mas realista social, por que não,
utilitarista capaz de presenciar o lucro na fartura (notou a robustez e a
fartura das oliveiras).
Nesse
que é quase uma obra póstuma, pois Eça faleceu quando revisava as suas provas,
há uma antevisão da época e também premonição do que viria a ser o confronto
entre conhecimento e utilitarismo. Jacinto se envolve em projeto social junto
aos seus trabalhadores e, após os personagens estarem instalados e organizados
no meio rural, onde reina a natureza, a organicidade, o narrador retorna a
Paris. Para formular a premonição de confronto do homem que virá, ele vai parar
por acaso num ambiente universitário – num episódio quase
extemporâneo dentro da narrativa só para a fabulação do futuro –, só para
que dentro de uma aula um estudante, “abortozinho de rapaz”, berre contra o
narrador, isto é, contra o ensino de humanidades: “Sale Maure!”. Na antepenúltima página do romance, este grito de
“mouro imundo” expressa a repugnância da modernidade que se aflora no despertar
do Século XX contra as doutrinas consideradas inúteis, que não geram lucro, bem
como antecipam a movimentação social de intolerância, na Europa, contra algumas
raças. Se Eça estivesse por aqui iria ver como esse berro ecoa ainda mais alto
na pós-modernidade.
Assim
como em O conformista, de
Alberto Moravia, o narrador acaba não de envolvendo nalguma resistência, pois,
em vez de promover enfrentamento deste caos que se descortina no cenário
europeu, que iria culminar na instalação de governos totalitários e na
deflagração de guerras mundiais, prefere fazer um retorno de se entocar n”as serras”
e, certamente, assistir à distância o movimento dos canhões. E quem não
enfrenta acaba contribuindo para a evolução de movimentos destroçadores da
ordem da Humanidade.
Ao
longo da escritura destas notas, reli O
Mandarim. Encanto de narrativa fantástica, que denuncia, certamente, o
colonialismo. Depois de tocar a campainha de se apossar
dos bens de outros povos, nada mais resta para reparar a destruição que o gesto
acarreta. Portanto, Eça de Queiroz não é só artesão da língua portuguesa (para
ele, uma viagem não é simplesmente embarcar, uma partida, mas “pus a proa ao
Oriente”), sobretudo é o cronista visionário do fim de uma época, de uma virada
de século.
1 de março de 2016
Edição de livro de poesia
Tenho feito muitas experiências com fontes para edição de livros de poesia. E também observado os livros de poesia editados. Muitos equívocos são cometidos. Os poemas devem ser sempre centralizados na página. Horrível quando os poemas são jogados no fundo do página. Nunca usar tipologia acima de 12 pontos para livros no formato 14x21 ou menores. Quanto menor o tamanho da letra mais elegante a página se apresenta. O tamanho da letra deve ser compatível com o tamanho do livro. E ter cuidado, pois há letras que são maiores, mesmo para paica menor. Controlar a mancha com o entrelinhado. O ideal é usar de três a quatro ponto no entrelinhado acima do tamanho da letra: 10x14, 11x15. Como a internet tem usado novos formatos de tipologia, o padrão de letra também tem mudado. Procure letras mais elegantes, com desenhos definidos. Parecidas com as usadas em blogs. São muitas as letras disponiveis graciosamente na internet. Saiba pesquisar, sobretudo as de formato slab, e certamente o projeto de seu livro de poesia terá sucesso. É o resto, escrever boa poesia, evitar o excesso de epígrafes, citações e dedicatórias. Centre na poesia de sua autoria. Quanto menos referencia, mais a sua poesia se destaca.
22 de janeiro de 2016
Luci Collin
É coisa rara hoje em dia sair um artigo sobre poesia num grande jornal. ainda mais de autoria de Luiz Costa Lima, e ainda abordando um poeta ainda não consagrado. Luci Collin mereceu este feito no caderno Ilustríssima, da Folha de S. Paulo. Fui atrás dos livros da poeta curitibana. Os dois publicados em belas edições da 7Letras. Querer falar foi finalista do Prêmio Oceanos.
É surpreendente a poesia de Luci Collin! Repercute a ambiguidade da interpretação desta época de compreensão dos inomináveis, pois tudo que se diga fica valendo. Se tudo que se nomina é compreensível, nada se compreende. Só me incomoda a forma de lidar com a lírica na poesia de Luci Collin e de mais meio mundo dos poetas atuais. Aparecem expressões diretas que devem ser abolidas. Eu não engulo mais poesia que conclua o poema jogando aberta e prosaicamente a relação dos sujeitos.
Um ótimo poema sobre o coração terminar assim "se instauraram em ensaiar/algum/outro/você" é não desejar ir muito longe. Tem um outro final que consegue ser pior: "o meu amor por você tem você". Será que o mundo está tão carente que todo poeta tem essa obrigação de jogar o "eu" abertamente no outro sem a ambição do ambíguo? E não é conveniente o uso de este, deste, esta desta, assim por todos os versos. "Este cão que me segue" não pode ser simplesmente o cão? O escritor precisa acautelar-se contra a facilidade de estar no mundo. A literatura é se desenraizar da terra em que se pisa. Tirando estas fragilidades, Luci Collin faz jus a Luiz Costa Lima.
O poeta atual só irá mais longe se tiver coragem de exigir à exaustão melhor textura de sua proposta textual. O ímpeto de dizer não é suficiente para a linguagem, como não é suficiente o lixo para a bagagem. O que é transportado tem de valer e terá de valer a bela embalagem.
Assim vale a bordadura de Luci Collin:
Quando eu vivia na casa da rua anis
os cômodos e os exemplos eram imensos
calor abatumado na água-furtada
os insetos tergiversavam
e as rãs e os sorrisos eram de cristal holoédrico.
Nem me interesso pelo significado de holoédrico, pois o poema vai se construindo numa satisfação milagrosa.
3 de janeiro de 2016
O mesmo e o frágil da poesia de Brasília em 2015
Quanto abordei minimamente a movimentação da poesia em
2015, disse que em Brasília a poesia “orbitou no mesmo e no frágil”. Alguns
poderão estar se indagando se a expressão não mereceria desdobramento para uma
maior claridade sobre este “mesmo” e este “frágil”. Afinal estou no processo de construção da
poesia de Brasília desde os anos 1970 e não preciso temer expressar uma abordagem
crítica ao que ocorre ano a ano na produção literária da cidade.
Há que reconhecer que alguns
movimentos não foram enriquecedores para os poetas autóctones. Quando o poeta
vai para a rua em movimentos como o Coletivo de Poetas e Mostra Itinerante
Poesia Falada a cidade ganha, mas os poetas perdem. Os locais de leitura exigem
poemas de expressividade nua e crua, enquanto a poesia exige processos
internos, nos tempos atuais, que não servem para serem levados para ambientes
enfumaçados e descompromissados como cafés e casas noturnas. Quando contatamos
os livros dos autores que integram esses movimentos, deparamos com uma poesia excessivamente
oral, debochada, com perda de construção interna, desenvolvimento linguístico e
atemporalidade.
Uma poesia que está perdendo
muito com este movimento é a de Carla Andrade. No pequeno livrete que ela
publicou em 2015, Voltagem ˗
pequeno, que chega a ser insuficiente para se ter noção exata de sua poesia ˗,
ela tem a obrigação de se debruçar excessivamente sobre o corpo. E essa
temática já está por demais explorada. Tomemos o poema "Hecatombe de emoções".
Alguns versos são cativantes: E as
palavras ficam um pouco rebentas/querendo sair do ovo dos ponteiros. Isso do
“ovo dos ponteiros” é sensacional. E ela desdobra outras imagens geniais: “esterco de cada um”, “enxurrada de flores amarelas”. Depois descamba para o amontoado inútil de
adjetivos: olhos
convergentes/irrevogáveis… Mas a
poesia dela não precisa de poema como “Função do riso”, que não tem novidade
alguma, a não ser despertar alguma hilaridade durante a leitura em um café (Nunca mais/falo eu te amo. /Esqueça!) E
o segundo terceto merece menos sorte ainda. E a Carla Andrade tem um potencial
inimaginável e nele aposto fundo.
O livro da Noélia Ribeiro, Escalafobética, sofre ainda mais com esta experiência de rua e dos
ecos remanescentes da poesia marginal. Perde totalmente para o superficial. Cheio
de lugares comuns, adolescente. (morro de
medo da paixão) Perto de ti/Arrepio nas costas/Tremores nas pernas. Estás aqui
a me abraçar. Não precisei nem pular páginas para descolar estes versos. Prova
de que a tradição da poesia de Brasília tem sacrificado muitos dos seus ícones,
pois não contribui para que eles evoluam.
Tivemos novos lançamentos de Nicolas Behr. No último nem pude comparecer. É chover no molhado falar do seu processo criativo, que já é íntimo de
todos. Uma obrigatoriedade de registro da cidade, sem se abrir às suas
contradições.
Tivemos ainda Sem passagem para Barcelona, de Alberto Bresciani, pela editora
José Olympio. Talvez o livro mais bem editado, de autor de Brasília, pois saiu
por uma editora de fora. Agrada-me a exatidão, a limpeza da poesia de Bresciani
˗ o que não é suficiente para que ela se apresente resistente. O autor está precisando desdobrar mais as
imagens, atrever-se mais, segurar mais o fôlego para que a temática e as
imagens se distendam numa combustão de maior expressão metafísica. Acho que ele
está sofrendo desse medo do poeta atual: controle da compreensão interior. O
poeta atual sabe mais do que deixa a poesia se expressar.
Ainda tem os livros de Francisco
K e de Angélica Torres Lima, que foram lançados no estertor de 2015. Error, de Francisco K, não se contamina
com os movimentos poéticos de rua, mas não se descola de um minimalismo
mallarmaico. Pelo menos ele se mantém fiel à sua proposta poética. E a poesia
é isso, se a hora do ouro passou:
pérola
negra
araçá
azul
acabou
chorare
tábua
de
esmeralda
aprender
a
nadar
A
poesia está precisando disso mesmo: reaprender a nadar. As braçadas estão muito
curtas para a travessia do inconformismo.
Vamos a O nome nômade, de Angélica Torres de Lima, com posfácio de Ronaldo
Costa Fernandes e orelhas do Alberto Bresciani. É um livro que não escapa dos
movimentos que antecedem a poesia do início deste século. Angélica foi formada
nas ruas de Brasília e é um tanto duro descolar de uma aprendizagem, mas até
que ela consegue. Permanece ainda o excesso de poemas minimalistas, quase
hai-kais, como o “Duo Elo”. E consegue partições que só as vanguardas poderiam ensinar:
O
anjo
tem
num olho
o
halo da lua
no
outro turvo
a
turba
das
ruas sujas.
Acredito
que a poesia ganharia mais se houvesse um fôlego para melhor diluição das
repetições internas. Pelo menos as ruas aqui são sujas. Não há obrigatoriedade
de uma política correta com o espaço urbano. O poema “Por toda a plataforma”
vem confirmar esse discurso real. Prefiro o poeta real ao oficial das loas à
cidade. Só por esse ajuste com a realidade o livro de Angélica Torres Lima se
firma como de grande presença em seu tempo. Não tem pieguice lírica, viaja e dói.
Teve o lançamento de Tatarana, de poesia visual de Felipe
Fortuna. Não consegui ir ao lançamento e também não tenho muito domínio para
abordagem de poesia visual. É matéria para o amigo Antonio Miranda, que, neste
ano, fez várias edições pela Poexilio, editora artesanal que ele mantem para
publicação de obras suas e de autores convidados. Lançou lindas caixas em 2015,
que não são abordadas aqui pela própria características das edições
(limitadíssimas, só para colecionadores). Mas tenho quase todas, inclusive o belo
“Delirium Tremens”, que foi escrito a seis mãos (Antonio Miranda, Zenilton
Gayoso e Salomão Sousa).
Teve a reedição de O prisioneiro, de João Carlos Taveira,
em comemoração aos seus trinta anos de poesia. Como é reedição e já integrado a
Brasília, vale o que eu já disse na orelha do livro.
Teve ainda Subversos, de Wélcio de Toledo. Editado por uma pequena editora de
Goiânia. Edição cuidada para poemas que
não esbarram no medo. O poeta dá evasão ao que está dentro de si. Poderia ter
polido o excesso de banalidade. Confio que isso vá ocorrer nos próximos
títulos. A poesia de Wélcio Toledo não merece se contaminar pelo pieguismo dos
posts das redes sociais e do falso lirismo que atualmente empesta a poesia.
Abaixo versos como este: o fim está
próximo e eu tão longe de você. Parece esta praga das letras das músicas
dos programas de virada de ano. Em frente, Wélcio.
Deixo de abordar o livro “e outros nem tanto assim”, de Alexandre
Pilati. É autor que tem entendimento do processo histórico da poesia. Mas achei
a poesia enrijecida, que não se deixa dizer e contaminar o leitor. Há um
cansaço dessa poesia que se recorta tanto que não é possível compreender de que
vegetal temos na mão a fibra. Mas alguém aí pode me ajudar a entender esse tipo de poesia, que não é de invenção e nem lírica.
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