17 de março de 2007

Reflexões do autor

Desde que me decidi a apresentar, estimulado pela amizade zelosa do amigo Vassil Oliveira, a produção de mais de três décadas de poesia, de forma revisada, sempre estive consciente de que não tenho o direito de desvirtuar as experiências intuitivas (quase instintivas) que — reconheço — impregnam meus primeiros livros.
Originário de uma região em que as famílias — quase todas constituídas de analfabetos — usavam vocabulário ainda da época do colonizador, com palavras arcaicas num uso fonético arrastado e em frases quebradas e entrecortadas, mas com a mágica da densidade da natureza, demorei muito a criar a consciência da tradição da poesia brasileira para que pudesse nortear rumos para alguma poética pessoal. Só fui ter explicações conscientes para a minha dificuldade para a formulação de longos períodos e descobrir a velhice do meu vocabulário quando, na década de 90, empreguei o termo “fussura”. Não constava dos dicionários brasileiros. Só iria encontrá-lo num velhíssimo dicionário impresso em Portugal. Assim, se algum leitor achar estranho o aparecimento de alguma palavra arcaica em minha poesia, não é por preciosismo que ela está ali, e muito menos as repetições de frases cheias de cortes.
Até perto dos quinze anos, não tive outro livro entre as mãos além da pequena cartilha que meu pai buscou na cidade para que eu fosse alfabetizado, e dos livretos de cordel que ficavam guardados a sete chaves no baú do quarto de meu avô. Foram muitas as noites em que, sentado ao pé da fornalha, li aqueles folhetos misteriosos para os peões e as pessoas da família, enquanto meu avô debulhava o milho que, logo de manhãzinha, as galinhas esperavam buliçosas ser jogado em chuva no terreiro. Não existiam livros nas casas que freqüentei na infância.
Aprendi mais com a natureza. Quando, com a linguagem goiana da infância, digo “mais”, indico que não havia nenhuma instituição para orientar a formação — não havia nem mesmo alguém para me apresentar um poema, quanto mais querer que me fosse indicado rumo à uma poética. Quando uma criança, por decisão própria, mostrava interesse pelos estudos, julgavam-na inteligente — um prodígio, todos passavam a dizer que “poderia até ser padre”. Tratava-se da tradição familiar, e mesmo da irresponsabilidade político-administrativa, de julgar que cada qual era responsável pelo próprio destino, mesmo quando a questão envolvia crianças.
E a cultura familiar ainda não vive a mesma situação? Tenho testemunhado disparates — os quais prefiro calar —, pois, se falo, correrei o risco de ser chamado novamente na polícia. Prefiro recomendar a todos que sejam cautelosos na formação dos filhos e com a inserção da cultura dentro da própria casa. Sem a convivência com livros, discos, discussões culturais, estímulo orientado e vigilante à educação, a visão das futuras gerações não será animadora. A família brasileira ainda não adquiriu o hábito de trazer a cultura para dentro de casa, e por isso não sabe que a casa está bem menor e bem mais vazia sem a presença de livros e de outros objetos culturais.As próprias pessoas, na convivência com a cultura, se sentem maiores, já que passam a enxergar com menos pobreza. Com a cultura, o indivíduo não enxerga mais só com a busca do valor da utilidade, mas com o valor do prazer estético. E ninguém aprende atribuir valor estético sem viver a cultura, cotidianamente, em casa e fora dela. Quem não tem a força do imaginário — que só a cultura dá —, tem de substituí-la pela força do punho.
Era dentro da natureza que o homem tinha de se resolver — arrancar sustento e beleza. Aprendi, antes de qualquer coisa, que tudo tem nome. Os pássaros, os objetos (sovela, formão, rabicho), as cobras (caninana), as árvores (assa-peixe, vinhático, imburana)… E que a linguagem mantinha paralelo com a natureza. Bastava dizer “sua caninana” para indicar o gênio peçonhento de um indivíduo! Ouvia a mãe, depois do dia de labuta, reclamar: — Parece que me passaram no engenho. Era impossível não entender que ela se sentia sugada de toda seiva, só no bagaço. Com a natureza, aprendi a liberdade. Ninguém me impedia de me movimentar pelas capoeiras, pelas trilhas dos morros, raspando em cobras e touros. Mas, se avançava demais, feria-me. Ainda me lembro dos lanhos quando ajudei a Delfina a arrastar um tamanduá meio vivo, de que ela ia aproveitar a carne para a alimentação. Meio morto, o tamanduá ia abraçando as touças de capim e raspando as garras em nossas pernas. As minhas mãos trazem as estrias dos cortes destas experiências. Quem não se fere, julga-se onipotente. Sem as marcas da experiência não há lembranças ou limites para a liberdade.
O Modernismo já alcançara a concentração de Jorge de Lima e Cassiano Ricardo e eu ali, debaixo das laranjeiras, ouvindo os desafios do andarilho Vicente, que exigia que eu tagarelasse com ele em rimas — já que não podemos chamar de versos aquela nossa arenga. Ninguém para me trazer os clássicos gregos ou latinos — só a pequena lição de rima de meu pai, que não tolerava as repetições em “ão-ão-ão” das músicas sertanejas.
Inquieta-me passar os olhos pelas inscrições tumulares e imaginar: “Aqui jaz Salomão Sousa.” E, na placa, constar que nasci na Fazendinha de meu avô materno, à beira do rio Calvo (Silvânia, Goiás), que ali vivi até os 12 anos de idade. Entre bois, entre gravatás.
Talvez, para alguém que está no túmulo, referência como esta sirva para reavivar as imagens que alguém registrou de uma localidade numa determinada fase da vida. Só nisso a morte me inquieta: apagar a memória, pois acredito que as lembranças que temos da infância são o nosso paraíso. Como apagar o cheiro das flores de moça-branca que enfeitavam o presépio de minha tia Criola?
E me indago se a placa será encomendada por um amigo ou por incumbência de algum parente. Depois, ela ir se esfumaçando com a ação da chuva e do sol ou por ação de um traficante de pedras tumulares que irá levá-la ao mercado negro, num contributo para apagamento da memória do pouco que terei feito durante a vida. Não acredito que a literatura garanta a imortalidade, pois o livro é perecível, e perecível qualquer outro meio de armazenamento de textos — e mais perecível a horda dos herdeiros do humanismo, que é onde residem aqueles que arquivam o acervo cultural da humanidade. E perecível a pedra tumular que, roubada, irá enfeitar a parede de um templo, ou servirá para a inscrição de ornamentar outro túmulo.
Ainda criança, sentia-me inquieto quando retornava das bandas do rio dos Bois, vindo das cevas do meu pai, de caçadas de tatu ou da anual visita à fazenda do Zequinha para chupar jabuticabas, e passava rente ao Cruzeiro — local em que fora fincada uma cruz gigantesca, de madeira sem lavrar, que servia de marco onde eram enterradas as crianças mortas com poucos dias de nascido, ou que já chegavam ao mundo sem vida. Não consigo esquecer de minha tia Criola se lamentar ao saber que animais silvestres revolveram a cova rasa onde fora enterrado um dos seus natimortos para se alimentarem do corpo pequenino. Sentia minhas carnes sendo destroçadas sempre que avistava aquela cruz apodrecida no meio das árvores da restinga. Só de lembrar sinto os nervos se contraírem em dentes afiadíssimos.
Imagino outras inscrições em meu túmulo — deixa saudades. Estas também irão se apagando no decorrer dos anos. Quem irá se lembrar daquelas crianças destroçadas, depois de mortas, nas covas rasas daquele Cruzeiro? Volto a indagar: por que nunca escrevem num túmulo que o morto em questão deixou inimigos, que seu nome ficava na gaveta para esquecimento já em vida, que foi um assassino de juventude, um fomentador de egocentrismo ao impedir a entrada de cultura na própria casa, ou adepto de políticas totalitárias.
Quase ninguém pratica ações com o fito específico de deixar saudades ou causar repúdio aos inimigos. Sei que escrevo por um prazer pessoal antes de qualquer compromisso com a sociedade ou com a língua. Quando, enterrado em repartições públicas sob o peso aterrorizador dos governos militares, e eu compunha em silêncio os poemas que integrariam meus livros, sabia que a poesia não libertaria ninguém que estava sendo preso — apenas tentava encontrar ou reviver alguma beleza para sobrevivência. Fiquei emocionado ao rever aqueles poemas para a montagem desta Safra quebrada, e constatar que não foram inúteis — pelo menos para reavivar a experiência daquele momento eles poderão ter serventia, e, de alguma forma, contribuem para relembrar “o ar negro” que pairava sobre todos nós naquele momento histórico do país. E não temo chamar de “quebrada” a minha safra, pois ela seria muito mais farta — certamente — se para mim outra formação tivesse sido oferecida. E quantas outras safras seriam mais férteis se tanta juventude não ficasse entregue à própria sorte nesse país! Quando jovens pobres, vidas desgarradas; quando jovens abastados, desgastados pela incultura de vícios óbvios! Grande parte da juventude do meu Estado de Goiás já está comprometida no futuro pelo alcoolismo. Quem não sabe que isso não é poesia?
Muitos poderão indagar sobre a necessidade de eu mexer nestes guardados. Fui motivado pela experiência de ouvir de meu filho, num dia em que fiz palestra na Associação Nacional de Escritores e, de forma livre, abordar episódios de minha vida. Espantou-se de viver ao meu lado e não saber que eu tivesse passado por aquelas situações. Vindo da tradição de narrações orais, não me sinto envergonhado em deixar por escrito estas abordagens. Dificilmente a história de minha família será remontada, já que ninguém deixou nada por escrito. Sequer correspondência. E nenhum registro iconográfico. Desconheço que alguém tenha mandado me fotografar antes dos meus quinze anos. Guardo uma única relíquia daquela fase de minha vida: a toalha bordada por minha mãe, com a qual fui batizado. Ali não está o meu nome. Mas o dela. Sem saber ler — no afã de grafar e talvez perpetuar um pouco mais o próprio nome — pediu a alguém para desenhá-lo e, assim, compô-lo em ponto-cruz. E o nome de Maria Delmira de Sousa vai se eternizando a partir daquelas letras enfeitadas pelas linhas coloridas enquanto consigo que o pano não acabe virando pó. Com essas sutilezas, a vida construiu em mim a poesia e a alegria.
Ainda que me denunciem na polícia, que escolham o correr da noite para me dizer que não tenho “berço”, linhagem, ou qualquer outra ancestralidade coronelesca; e gritem que, se os tempos fossem outros, enviariam os mensageiros da morte; ou reabram os porões; ameacem-me com a gaveta se eu mostrar dissensão — não apagam a urna de minha alegria. Só de saber que escapei da doença de Chagas e de ser enterrado no Cruzeiro, que encontrei escritores, que me correspondi com desconhecidos de todo o país para não me sentir desligado da humanidade, que pude freqüentar bibliotecas — principalmente a Biblioteca Municipal de Silvânia, onde tive o primeiro contato com os modernistas —, que li boa fatia da poesia universal; que tive incentivadores como o Ivo Lenza, que tive amigos do naipe de Esmerino Magalhães Jr. e José Godoy Garcia, a alegria não se desgarrará mais de mim.
Seria masoquismo dizer que foi alegria saber que uma leitora, com nosso primeiro livro nas mãos, chorava no ônibus após ler um poema sobre a indiferença reinante na cidade. E a indiferença deve ser boa temática, pois, anos depois desse primeiro incidente, soube do surto ininterrupto de choro de outra garota após ler um poema do livro Falo, também sobre o mesmo tema. E não a conheci e não a tive rindo entre os braços! Mas é mais emocionante o relato de idênticos incidentes — e eles se repetem — do que um telefone no meio da noite com a voz invejosa da morte. Por não se admitir crítica, vivemos momento de tão insossa produção cultural. É a crítica que acende os brios do autor — obriga-o a ser vigilante, a fazer aparas para não se mostrar frágil, a buscar azeite para untar a versatilidade de invenção.
Para quando for encomendada a minha pedra tumular, ainda não sei mensurar se deixarei saudades e atitudes que possam servir de exemplo a descendentes e gerações futuras. Coube-me viver num momento crítico para a linguagem da poesia brasileira, que é onde escolhi transitar com a fantasia. Dentro desse momento de crise — poesia marginal, de resistência, até chegar à pós-vanguarda e de indiferença com tudo que traz a marca humana —, a minha contribuição só poderia transitar dentro da insegurança. Dúbios livros que publiquei no final dos anos 80 e na década de 90! Só depois todos saberiam avaliar que nada estava resolvido naquela fase, nem na cultura nem no campo político-administrativo. Impeachment para todos a todo momento, e todos o mereceram. Até mesmo a poesia.
Não levarei ódio para o meu túmulo — podem grafar no meu epitáfio. Levarei as lembranças dos arredores de Silvânia, andarilho pelas ruínas das minas de ouro. Da leitura dos suplementos literários que chegavam com os jornais que o Antônio do Clóvis comprava para papel de embrulho. Só para ter o direito à leitura, eu me fazia de mensageiro para apanhar aquelas relíquias semanalmente na agência dos correios e telégrafos. Ah! os sonetos de Florbela Espanca no jornal O Dia! Enquanto lia, fazendo resumos para que ele também se inteirasse dos acontecimentos do mundo, o amigo Vicente, ali atrás do balcão, preparava sorvetes artesanais naquela máquina ruidosa, que parecia um corpo mecânico desengonçado. Levarei a memória das viagens à cerâmica do Jairo com o almoço para os peões. Sentava-me ali para apreciar aquela máquina alemã que parecia um artefato alienígena. A máquina — com uma força intestina descomunal — empurrava o barro para ser cortado em tijolos e telhas que, após a secagem, iriam aos fornos de bocas avermelhadas.
Levarei para o meu túmulo a lembrança de chegar a Brasília com uma malinha debaixo do braço e a caixa com meus livros aos ombros. Acolhiam-me os meus padrinhos Mariinha e Geraldo Brasil. Confiavam na inteligência daquele garoto que gostava de ler. Só há uma maneira de retribuir: não trair a confiança que em mim investiram. O riso com que apareço na foto em que me encontro no meio daquela família comprova a alegria de ter vivido com eles.
Fiz Científico no Colégio de Taguatinga Sul, onde recebi do poeta Anito Steinbach as primeiras orientações objetivas para a prática da poesia. Ainda que roubem a minha lápide, não apagarão nossas conversas pelas altas madrugadas, nas paradas de ônibus. Daí, ampliou-se o cordão de amigos, que iria contribuir para cimentação da poesia em minha vida. Wil Prado, com a fanática resistência crítica à ditadura; Ronaldo Peixoto Alexandre, com a aliança intrínseca de irmãos; Herondes Cézar, que me abriu portas para novas correntes de pensamento e obrigou-me a investir na filosofia, e me enriquece sempre com a crítica dura e sistemática. Perdão, se não acrescento os objetos diretos sugeridos na leitura deste livro. O João Carlos Taveira, com o trânsito contínuo em nossa casa, que já não é só meu amigo, mas de toda a família. O jornalista Vassil Oliveira. Ponto, pois seria limitante qualquer referência que tentasse ser definidora da importância de sua presença em minha vida. São muitos os amigos goianos. Impossível não haver a inquietação crítica ao lado de Brasigóis Felício, que fica aqui representando todos os outros! Foram poucos os encontros com Yêda Schmaltz, mas suficientes para algo deslocado dentro da paisagem sempre que retorno a Goiás. Mas o importante é que ela e o José Godoy Garcia tornará, com o passar do tempo, a poesia goiana sempre mais robusta. Essa perspectiva torna a ausência deles menos cáustica.
Portanto, aqui a imaginar o meu epitáfio, descubro que morrer não é um bom augúrio para o escritor. É perder amigos e perder a oportunidade de fazer novas amizades. Chegaram recentemente Robson Corrêa de Araújo e Ronaldo Costa Fernandes com as mãos cheias de frutos generosos. As amizades são grandes árvores, que vão criando ramificações, as quais temos de cuidar bem para impedir que parasitas se depositem sobre elas. Nossa tarefa humana — tarefa cotidiana: impedir que as amizades se definhem, e incentivar que elas se reproduzam. Busco reproduzi-las entre a juventude. Na velhice, quero ter amizades novas para ter acesso à poesia nova.Não ponham tampa no meu túmulo. Senão os amigos e mesmo os inimigos que ali comparecerem, não poderão ver o meu pó — feliz.

3 comentários:

  1. sim,a liberdade não tem limites,na nova acropole diriam e a lei da gravidade,esqueceram dos santos dos montes e outros foguetes estrelares,quanto a amizade gosto da pergunta daquele seu amigo henry,no livro sobre o povo grego;quem são nossos amigos?...poderia ser aquele que converssou apenas um dia numa rodoviaria qualquer...os homens sempre querendo por limites se ja não bastassem os da natureza,mas podemos voar de asa delta de pipa voei muito de pipa e minhas estrias são de linha correr com cortante feito por mim...e obrigado por me incluir ao lado do ronaldo(aquele que governa em silencio)gosto dos seus labios grossos me lembra o de outro ingles de outras pedras rolantes...casco lizo não adere rótulos ,um beijo. mete bronca;o caminho é seu... Robson2007.

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  2. saloma,,
    talvez não leia (entenda) todas as poesias do seu livro, mas suas reflexões, suas memórias já são minhas. parece que vivi cada momento, que te acompanhei desde o principio.não se preocupe com nossa linhagem, com essa toalha de nossa mãe estamos escrevendo nossa história.todos estamos bem sabendo que você está bem (feliz) e principalmente vivo.
    abraços e beijos do mano \ zezinho

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  3. Mano,
    a nossa história somos nós mesmos que a escrevemos e com os recursos que dispomos, e com a força de vontade que é inerente de cada um, e assim ela vai se dilineando...Vc tinha/tem um força maior que muitos, e isto o torna mto especial. E quando vemos jovens como Marcos,Ligia,... e tantos outros serem influenciados/ajudados por você, notamos o quando a nossa vida vale a pena... E mtas das vezes nem paramos para pensar que não disse eu "amo mto você".
    Beijos.
    Rosa.

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Salomão Sousa sente-se honrado com a visita e o comentário

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