Quando me canso das leituras, sinto retornar aquela gana de andar solitário pela cidade. Quando é tempo de chuva ainda facilita mais. Atrai-me a cor escura que a cidade assume, parecendo que há uma realidade perdida no ar e outra querendo nascer da água.
Como me encontrava desiludido com a leitura de Minha Formação, de Joaquim Nabuco, na tarde desta sexta-feira, fui para o centro de Taguatinga — cidade satélite de Brasília, localidade que foi a minha primeira morada em Brasília.
Apesar de tratar-se de autor de leitura obrigatória de nossa formação cultural, já que contribuiu para a libertação dos escravos —, Joaquim Nabuco não deixa de contribuir para a perpetuação da idéia monárquica, para a perpetuação da idéia da hereditariedade como meio de acesso ao poder, e para a fixação de um espírito liberalizante para a consolidação de uma classe dominante, que é de onde ele veio e sempre ficou. E pior, pode contribuir para o desamor à nacionalidade.
Eu tinha de ir para a rua após ler uma frase como esta: As paisagens todas do Novo Mundo, a floresta amazônica ou os pampas argentinos, não valem para mim um trecho da Via Apia (...) Os grandes homens podem errar nas grandes definições, mas têm de acertar nas pequenas observações. Fazendo turismo pela Europa à custa do erário, na diplomacia, e fazendo o contra-serviço de divulgação da nacionalidade! Mas ele tem ambição e seus acertos, principalmente quando reflete sobre a literatura em formação naquele período (mas mesmo assim podemos notar que ali Joaquim Nabuco olha com o olhar de superioridade de quem esteve na Europa, em vez de olhar com nobreza — já que voltou ainda mais convicto do espírito monárquico — diante daqueles que procuravam fixar alguma raiz cultural numa terra ainda inóspita de tudo!). E queria desancar José de Alencar e deixar em dúvidas o trabalho de Machado de Assis.
Temos de ser mais rigorosos com os autores que não fixam um espírito de nacionalidade. Por isso minha preferência por Dante Moreira Leite, que sabe ser crítico sem destruição.
Só mesmo indo espairecer em caminhadas pela chuva! Pisar nas favas úmidas das sibipirunas. Olhar as mães felizes com as crianças a elas atracadas debaixo dos guarda-chuvas. Só assim, atracados, mãe e filho se identificam. Só andando assim ao lado deles me identifico com a cidade e com o homem. Nem me importo com o deseducado que escolhe a poça para jogar água em mim e na mãe unida ao seu filho.
Apesar da chegada do metrô e de alguns edifícios comerciais, Taguatinga não difere muito daquela cidade plena de balbúrdia de quando desembarquei em 6 de janeiro de 1971, com uma malinha de papelão nas mãos e uma caixa de livros nas costas. Se não há mais o cine Lara, onde naquele dia assisti o primeiro filme na Capital. Lembro bem que era Romeu e Julieta, de Zefirelli, e estava acompanhado de minha prima Fátima Brasil. Não me esqueço que a luz era fraca nalguns trechos das ruas da cidade e, assim que saímos do cinema, avancei de cheio numa poça d’água.
Não é novidade eu andar solitário — assim me habituei desde a minha juventude. Serve para a abertura de reflexões, e também para estabelecer paralelos entre as vidas das outras pessoas e a nossa própria vida. E mesmo paralelos entre as diversas etapas da nossa vida, paralelos com a nossa realidade e aquela que encontramos nos livros. Sem a solidão e os paralelos que a partir dela podem ser estabelecidos ninguém encontra nada em si mesmo.
Ali, comprei discos de Radamés Gnattali em ponta de estoque a menos de quatros reais a unidade. Daí já é possível estabelecer reflexões sobre a situação de miséria em que vive a cultura brasileira. Ainda de manhã, consultando a lista de livros de uma promoção num site da internet, já notara que todos os livros de poesia editados nos últimos meses estavam à venda a preços pífios.
E não é só a cultura que trafega na lâmina da miséria! Para não dizermos “lama”, já que estamos trafegando na chuva!
Um rapaz e um velho andavam à minha frente. Rápido, o rapaz voltou-se para mim, com a voz pastosa pelo uso de bebida. E me pegou de surpresa, estendendo a mão num gesto de quem pede esmola:
— Eu estava dizendo para ele (e apontou o velho ao dirigir-se a mim!): não sou muito novo para estar com a mão assim?
Saí com subterfúgios, pois poderia irritá-lo se dissesse que, aos meus dez anos, as minhas mãos calosas também já estavam marcadas. Certamente, não tão fundo como as dele.
E não só a chuva ainda traz poesia humana dentro da cidade. Ali parado perto de uma loja de roupas infantis, aguardando passar a onda mais forte da chuva, observo duas mulheres passarem com galhofices cheias de malícia. Nisso, outra mulher que estava sentada atrás de mim, num tamborete, puxa conversa. Quer saber de onde sou, coisas assim, o que faço. Logo, com seus belos olhos verdes injetados de sangue — certamente pelos esforços que a sua profissão exige — aponta para os lados de um hotel que eu já notara na ruela, e me pergunta se não desejo aproveitar a tarde para namorar. Digo-lhe que é muito cedo, e que não tinha tirado a tarde para namorar. Ela continua insistindo. Quando a chuva pára, e agradeço o convite em minha última negativa, ela conclui:
— Não há de que. A amizade é a mesma.
Só andando solitário pela cidade para saber que a amizade não é algo assim tão fluido, e que vida possa trafegar com beleza e dignidade penas na Via Apia.
A poesia é meu território, e a cada dia planto e colho grãos em seus campos. Com a poesia, eu fundo e confundo a realidade. (Linoliogravura do fundo: Beto Nascimento)
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Taguatinga é uma cidade muito diferente... também gosto de andar por lá... andar pelo Centro, depois seguir pela comercial. A comercial é algo tão surpreendente pra mim. Taguatinga tem 3 shoppings, mas aquela avenida continua lotada, com gente de todo tipo. Há alguns dias descobri que amigos do trabalho saem do Plano para fazer compras lá. Eu sempre pensei, desde pequeno que aquilo se tornaria uma W3 Sul, com suas lojas fechadas e becos escuros... mas não... a Comercial Norte e Sul de Taguatinga foi contra isso.
ResponderExcluirDepois volto para falar sobre as prostitutas.
Aquele bequinho do Centro de Taguá, cheirando a urina me traz um monte de lembranças!
ResponderExcluirEu comecei a fazer inglês no Centro Europeu bem ali pertinho... tinha uns 12 anos e o local já era um pontão!
Quando li o texto me lembrei de uma situaçao muito parecida, que tive quando esperava uma chuva muito forte passar para ir para casa... Bom... a diferença é que não me ofereceram a amizade!
;)
Nossa,amei essa mensagem.
ResponderExcluirAcho qe descreve todo o meu momento agorinha.
Vale,por criar esse espaço e desculpa ter abandonado voce,adorei os livros e adoro ter sa amizade,bom,vou nessa rsrs