2 de outubro de 2006

VIAGEM COM GUIMARÃES ROSA A BOM DESPACHO

Riquíssima a nossa viagem a Bom Despacho, em Minas Gerais, para participar da VI Feira do Livro daquela cidade, a convite do escritor Jacinto Guerra, organizador do evento e construtor do desenvolvimento cultural daquela região. Visitamos o patrimônio histórico-cultural, participamos de debates, de oficina literária, de lançamentos; e, no retorno a Brasília, pude conhecer, em conversa com os escritores Alaor Barbosa e Napoleão Valadares, que são especialista em João Guimarães Rosa, peculiaridades da gênese do romance Grande Sertão: Veredas.

Ficamos instalados no SESC, onde foram realizados todos os eventos da VI Feira do Livro de Bom Despacho e Cidades Vizinhas, exceto a feira do livro e as conversas com escritores na Praça da Matriz. Na abertura do evento, debate sobre as origens históricas da criação do município de Bom Despacho, com destaque para o depoimento de Orlando Ferreira de Freitas, historiador e genealogista, autor do livro Raízes de Bom Despacho. Além da palestra de Alaor Barbosa sobre o regionalismo brasileiro, ainda merece destaque a participação do escritor e jornalista Ozório Couto sobre o tema "Drummond e Emílio Moura: a poesia brasileira em Itabira e Dores do Indaiá". Ozório Couto, um dos grandes conhecedores da obra de Drummond, e autor de um livro sobre a relação dos dois poetas, foi feliz na conceituação da amizade como um dos principais sentimentos do homem.

Sobressai ainda, nesta aventura de Bom Despacho, a viagem de volta junto com Alaor Barbosa e Napoleão Valadares, pois são especialistas na obra de João Guimarães Rosa e travaram animadas discussões sobre a gênese do romance Grande Sertão:Veredas, que comemora 50 anos agora em 2006.

Antes é bom lembrar que João Guimarães, certa vez, desceu do trem em Bom Despacho para visitar um seleiro amigo, a quem presenteou com um exemplar da primeira edição do Grande Sertão: Veredas pelo conserto de uma sela. A confidência dessa relação de Guimarães Rosa com Bom Despacho foi feita a mim e a Jacinto Guerra pelo músico Vagner, neto do seleiro, que encontramos na biblioteca pública fazendo pesquisas para um disco que prepara sobre música folclórica da região. Vagner confidenciou mais: o exemplar autografado está na Bahia, mas há possibilidade de ser cedido ao museu de Bom Despacho.

Não vou conseguir dar ordem a todas as discussões dos dois amigos, principalmente pela informalidade em que elas se deram, e também pelas condições naturais que interferem nas conversas das pessoas que estão em viagem. Mas tentarei recuperar alguns flashs. Por exemplo, o Alaor lembrou que Riobaldo esteve no Jalapão numa época em que a localidade não era atração turística. Alaor Barbosa e Napoleão Valadares relataram ainda os encontros que mantiveram com Manuelzão e com Sidraque. Alaor acredita que Diadorim está enterrado no Paredão e chegou a visitar o cemitério daquela localidade. Já Napoleão tem dúvida quanto a essa hipótese, e, no encontro com Sidraque, pôde apurar que não existe o sobrado descrito no romance. Sidraque lhe disse que isso foi invenção do romancista; no entanto, disse que no lugar da descrito até existe algumas estacas.

Ambos foram unânimes em reconhecer que ao Grande Sertão: Veredas estão enxertados personagens reais. Napoleão Valadares, que tem o punhal, o facão e o cabo de taca de Antônio Dó, fez vasto relato da vida real desse personagem, que foi perseguido por várias missões policiais. Na primeira delas, o chefe morreu afogado na fuga. Fez um relato especial, colorido de detalhes, sobre a luta de Antônio Dó com Alcides do Amaral. Lembrou que esse delegado de São Francisco tinha um cachorro com um dente de ouro, o qual levava para atacar presos, pois “gostava de ver o sangue escorrer no ouro”.

Foi saboroso ouvir Napoleão Valadares narrar a história do seu conto “De Dó”, publicado no livro Campos Gerais, editado em 2004 pela André Quicé Editora. Em Grande Sertão: Veredas, João Guimarães Rosa conta parte da vida dos jagunços Faustino e Davidão e sugere que algum outro autor complete a história. O conto dá continuidade à história dos dois jagunços, que negociam um pacto de morte. Só lendo para crer nos entrechos e no final.

O escritor Alaor Barbosa, um dos mais importantes ficcionistas de Goiás, especialista na obra de Monteiro Lobato, e amigo e amante da obra de João Guimarães Rosa, comentou os seus projetos literários para os próximos meses. Primeiramente, organização de um livro para a LGE — ainda sem título — com artigos que escreveu ao longo de sua vida sobre a obra de Bernardo Élis. E, ainda, publicação de Sinfonia Minas Gerais: vida e literatura de João Guimarães Rosa, e O Romance Regionalista Brasileiro — Origens: obras fundamementais, evolução: obras capitais; e reedição do romance Memórias do Nego Dado: Bertolino da Abadia. E vem fazendo estudo, principalmente com visita às fazendas de Piracanjuba, com vistas a escrever um ciclo de romances sobre a história de sua família.

Passamos por Pompéu, cidade vizinha a Bom Despacho, para uma visita relâmpago à escritora Edméia Faria. Mundo pequeno. Ao entrarmos num bar para “verter água” um filho de Arinos reconheceu Napoleão Valadares. Enquanto conversávamos com aquele filho de vizinhos da fazenda da família do Napoleão, uma garota encostou a bicicleta no meio-fio. Após dirigir-se ao balcão e pedir um lanche, escolheu a cadeira próxima à porta de saída do bar para se sentar, e ali ficou iluminada pelo sol escaldante do meio da manhã, com as pernas vazando douradas do short curto. Mas não disse com a boca úmida de gordura:

— Salomão! Eu te conheço.

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