8 de outubro de 2006

Domingo lento

É um domingo branco, que foi lavado pela forte chuva da véspera. Sobre o branco do papel, a visita de uma formiga, destas que crescem sob as cascas da madeira. Quantas vi na infância fugir enquanto a lenha se queimava na fornalha, assustadas, sem rumo, pela perda da moradia.

Ela circula, desce, se perde entre os livros. Da vizinhança, não só as vozes festivas, também chega o batuque de um pandeiro.

Terminou o disco de Andrew Hill, de competência para os arranjos de seus discos jazzísticos e para as perfomances ao piano. A formiga retorna e fica em dúvida quanto ao destino.

Leio Salvatore Quasimodo. Quem não esteve perdido numa ilha? Num livro, numa folha em branco? Já não teve a vontade de partir? Traduzo o poema O Alto Veleiro só porque contém a palavra "limoeiros", pois é minha intenção, num futuro distante, organizar uma antologia só com poemas que tragam as palavras "limões" e "limoeiros". E será dedicado à Mara Puljiz, que vi crescer entre limões. São rara as crianças de hoje que terão desmanchado um ninho de formigas para saber que elas, antes de cescerem, são pequenas larvas brancas, cheias de gosma. Se o livro nunca sair, fica aqui a dedicatória à Mara Pulgizz, que viu muitos ninhos de formiga.

Chega também um e-mail do Herondez Cézar com uma carta de Cortázar sobre a morte de Che. Deixo aqui um pedaço da carta para a Nayara, que conheci ontem na Livraria Cultura, onde falamos de Cortazar. O universo da cultura é feito de pessoas que circulam procurando ninhos de formigas, buscando onde ancorar um pouco de sua humanidade. Nayara, olha que lindo o pedaço da carta de Cortazar: Quiero decirte esto: no sé escribir cuando algo me duele tanto, no soy, no seré nunca el escritor profesional listo a producir lo que se espera de él, lo que le piden o lo que él mismo se pide desesperadamente.

E a tradução do poema de Salvatore para todos os amigos do dia, principalmente para as viagens brancas de Ronaldo Costa Fernandes. E também para a formiga.

O ALTO VELEIRO


Salvatore Quasimodo


Quando vieram pássaros mover as folhas
das amargas árvores que rodeiam minha casa
(eram cegos voláteis noturnos
que cavavam seus ninhos nas cortiças)
levantei o rosto para a lua
e vi um alto veleiro

No perfil da ilha o mar era de sal;
a terra se estendia e antigas
conchas brilhavam aderidas às rochas
sobre a enseada de limoeiros anões.

E disse à minha amada em que se agitava um filho meu
e por isso tinha sempre o mar na alma:
“Estou cansado destas asas que batem
num ritmo de remos, e das corujas
que se lamentam como cães
quando há vento de lua nos caniços.
Quero partir, quero deixar esta ilha.”
E ela: “Oh, querido, já é tarde: fiquemos.”

Então fiquei a contar lentamente
os reflexos vivos da água marinha
que o ar juntava em meus olhos
a partir do corpo do alto veleiro.



3 comentários:

  1. Salomão
    Que honra ser premiada duas vezes, ontem quando te conheci e ganhei seu lindo livro que estou lendo e me encantando, e hoje, quando abri seu blog e me deparei com esse trecho de "Cortazar" dedicado a mim. Falando nele, adorei sua sugestão. Bom restinho de Domingo,
    Abraços
    Nayara

    ResponderExcluir
  2. foi ótimo encontrá-los!
    assim em busca de conhecimento,
    com alegria!
    não desapareçam!
    quem sabe voltamos a nos ver!

    ResponderExcluir
  3. uma vez na beira do rio paranaiba nos aplicamos uma formiga-onça,depois soltamos e ficamos observando seus movimentos:ela dançou algo diferente por um longo tempo,nossos olhos eram só para ela.depois foi embora em disparada...as vezes fico pensando sera que mudou o coportamento do formigueiro,,,as formigas-onças como moram ?

    ResponderExcluir

Salomão Sousa sente-se honrado com a visita e o comentário

Ainda estamos aqui

Agradeço meus netos po r terem acolhido o convite para assistirmos juntos ao filme "Ainda Estamos Aqui". Fiquei feliz por encontra...