11 de janeiro de 2014

A poesia de Antonio Moura



Para descobrir o que se produz de poesia no Brasil nos últimos anos, é necessário olhar para outras fronteiras; e, acima de tudo, indagar o que se espera da poesia no momento em que a questiona. Não adianta questioná-la esperando que ela seja construída com fluência idêntica a de outras épocas. Cada poeta flui a poesia do seu próprio tempo. Se alguma idiossincrasia é notada na poesia de alguma época – que pode ser a época atual − é porque no homem presente existe a prática de alguma idiossincrasia a ser captada.
Do Norte, chega a contribuição de Antonio Moura. Poeta pronto, de fazer inveja. Se alguma postura for exigida da poesia brasileira vindoura, não há dúvida de que a poesia do futuro é a que Antonio Moura constrói agora. Nela não há idiossincrasias, rasgos ou manchas que a macule.
O livro “A sombra da ausência”, de 2009, pela Lume Editor, é um milagre na poesia brasileira produzida recentemente. Não é à toa que Antonio Moura, que iniciou na poesia em 1996, com o livro “Dez”, vem merecendo acolhida em outras línguas. “Rio silêncio”, de 2004, seu terceiro livro, além de traduzido para o inglês por Stepan Tobler, acaba de ser saudado pela revista Tride Magazine. Ele informa que, além de estar prevista a publicação de novo título para breve, também está programada uma seleção de sua produção para este ano numa edição em catalão, com tradução de Joan Navarro, com título já definido como “Após o dilúvio e outros poemas”. Além de estar sendo traduzido para o espanhol por Victor Sosa, poeta já lançado no Brasil e que merece ser re-conhecido.
             Os dois primeiros livros de Antonio Moura, o segundo, “Hong Kong & outros poemas”, de 1999 – com experiência de desconstrução e de efeitos de visualidade – contribuíram para a descoberta de um verso de rara construção interna. São estas as qualidades que devem ser aguardadas e exigidas da poesia atual (e já pronunciadas nos poemas de Antonio Moura): fuga ao simples colorido do real, abandono confessional da lírica amorosa, ou das óbvias partições das palavras. Se do paraense Antonio Moura fosse exigida conexão da poesia com a natureza que o cerca, não teria existido essa possibilidade de uma poesia realizada com raras invenções. Em qualquer territorialidade, a poesia tem de ser buscada não pela natureza local, mas num somatório de experiências do habitat e dos extratos externos. Talvez a circulação de Antonio Moura por outras territorialidades tenha agregado a universalização à sua poesia.
            Após o mundo transitar pela alteração da visualidade urbana, com seus neons, designs que interferem da sala de estar ao lavabo, com a natureza empurrada para distâncias inalcançáveis, a poesia herdou novas flexões. A construção em si mesma, com a pureza do que o tema se propõe, com acúmulo de referências e de possibilidades de transgressões do significado. Um evoluir, versos que num instante quase se conclui a não exauriu a totalidade das imagens ligadas às anteriores.  A possibilidade d’o canto que sai da sombra do pássaro, numa sombra que deve ser o próprio poema, pois este, ao se mistificar em palavra, não incorpora fisicamente nenhum real, mas sua ausência na luz do significado.  
Se algo aproxima a poesia de Antonio Moura à de Drummond é o sentimento do mundo. Independente da territorialidade, que está acima do mineral no Pará, mas líquida, ela transparece o sentimento do mundo construtivamente em cada verso enquanto viagem, interlocução com o homem, diálogo com a interpretação mística. Assim como muitos poemas de Drummond, também muitos de Antonio Moura certamente integrarão o cânone da poesia brasileira. Este do fruto, com a plasticidade do “o” oval de fruto, com sua ontologia:

          O
fruto sobre a relva está ali,
esplêndido – rei – dourado.

Mas, ao apanhá-lo, como tudo,
tem – podre – o outro lado.

Ao contrário do que se ensina aos estudantes nalgumas localidades do Brasil, a lírica de Antonio Moura abole o outro que poderia estar em frente ao poema construído. Veja-se o poema “Heloisa, 1963 – 1977”, que pode ser uma namorada, uma prostituta, uma amizade, um fruto. Não há um referencial. Talvez uma árvore paraense. O primeiro verso pode remeter a qualquer separação: “Não demorou muito a separação”, que irá se repetir como penúltimo, após intercalar “aroma” e “pétalas, pálpebras/caem e reúnem-se ao chão”, para a grande chave: “Entre o Céu e a Terra, a reconciliação”. Engana-se aquele que julga que a lírica é a volição do eu enquanto presença do outro. A lírica é volição do eu enquanto presença no mundo. Se há volição com o outro é porque este outro é parte integrante da territorialidade mítica do mundo.
            “A sombra da ausência”, em que pese a multiplicidade dos temas, das localidades em que os poemas se constroem ou são construídos, sustenta unidade, na cautelosa construção, que não são arrancadas com artificialidade, mas espontaneamente encontradas na imagética do autor. Sem loucura, pois na poesia não é o poeta que deve ser louco, mas as palavras que devem sair ensandecidas de suas mãos. É um dos raros poetas que segue pela cartilha de João Cabral de Melo Neto: construir até não existir vácuo a ser preenchido, ou notado como falha. Até onde poderia reconhecer alguma incompletude, os versos ainda assim carregam a sua funcionalidade. No poema inicial, que dá título ao livro, dos versos finais (O céu se ensombra, o azul fica./Em alguma dobra das pálpebras/da íris/dos cílios, sua luz habita) podiam ser retirados os artigos. O poema ganharia em maior profundidade sem a nomeação da presença do eu (a luz fica. Em alguma dobra de pálpebra/de íris/de cílios).
Se aqui se silencia sobre a perfeição do livro “Rio silêncio” é para não exceder na regalia ao autor de uma poesia já com tanta gala!
            Qual o próximo livro me aguarda para Sherazade soprar em meus ouvidos?

@ Salomão Sousa

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