19 de janeiro de 2014

Juan Gelman


Faleceu aos 83 anos, no dia 14 de janeiro, o poeta argentino Juan Gelman. Por ele, tenho uma ligação emocional doentia: por duas razões: perseguido pela ditadura, teve familiares desaparecidos durante a ditadura, lutou para encontrar a neta nascida nos porões da ditadura, e também, minha emoção, pela poesia ligada ao humano, e de um alcance estrutural raro. A sua poesia influenciou muito a minha poesia dos últimos anos, Sobretudo a espacialidade do poema. Quando ele veio a Brasília, estive com ele. Deixo aqui o autógrafo que ele deixou no exemplar de sua Poesia completa, da FCE, que pedi diretamente no México, onde ele residiu nos últimos anos de sua vida. Relembro a figura frágil, com grande vivacidade em conversar comigo. Talvez um dos primeiros poemas que ele escreveu, é um epitáfio. Lamentável que o fotógrafo tenha perdido a foto que fizemos juntos. Mas talvez seja melhor a foto da poesia e do poeta na memória. Deixo aqui a tradução dos três primeiros versos do poema:

Um pássaro vivia em mim.
Uma flor viajava em meu sangue.
Meu coração era um violino.




Mas, não resisto, vamos traduzir um trecho de um texto memorialístico, que ele escreveu em Roma, nos idos de 1980:

Eu não vou me envergonhar de minhas tristezas, de minhas nostalgias. Estranho a ruazinha onde mataram meu cachorro, e eu chorei ao lado de sua morte, e estou unido à pedra de sangue onde meu cachorro morreu, no entanto existo a partir disso, existo disso, a ninguém pedirei licença para ter saudade disso.
Acaso serei outra coisa? Vieram ditaduras militares, governos civis e novas ditaduras militares, me tiraram os livros, o pão, o filho, exasperaram minha mãe, me jogaram fora do país, assassinaram meus pequenos irmãos, aos meus companheiros torturaram, desfizeram, quebraram. Ninguém me tirou da rua onte estou chorando ao lado de meu cão. Qual ditadura militar poderia fazê-lo? E qual militar filho da puta vai me tirar do grande amor desses crepúsculos de maio, onde a ave do ser tremula diante da noite?
Não era perfeito meu país antes do golpe militar. Mas era meu lugar, as vezes que tremi contra os muros do amor, as vezes que fui criança, cão, homem, as vezes que quis, me quiseram. Nenhum general vai arrancar nada disso do país, a terra que reguei com amor, pouco ou muito, terra que estranho e que me estranha, terra que nada que for militar poderá me perturbar ou manchar.
É justo que a estranhe. Porque sempre nos quisemos assim: ela pedindo mais de mim, eu dela, doloridos ambos da dor que um dava ao outro, e resistentes do amor que nos damos.
Te amo, pátria, e me amais. Nesse amor queimamos imperfeições, vidas.
 



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